sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Eu, o Mudo e a Praça.

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Uma vez eu conheci um mudo. Um homem mudo.


Eu trabalhava de Office Boy, estava sempre para lá e para cá com a pasta debaixo do braço, minha pasta era pequena, cheia de divisórias, onde levava cheques, documentos, dinheiro, protocolos, autorizações para isso e para aquilo.

Foi uma época boa da minha vida, escrevi a maioria de minha musicas e as melhores nesta época, escrevia parado, andando, em qualquer lugar, sobre qualquer coisa. Foi também a época que mais li, lia jornais, revistas, livros. Li o primeiro livro da minha vida trabalhando de Office Boy, conheci os dois maiores amores da minha vida trabalhando disso, indo para lá e para cá.

Tive sorte, eu pouco ia para o centro de São Paulo, digo que foi sorte por que não andava muito, ficava sempre no bairro próximo do escritório indo a bancos e outros endereços, trabalhava bem pouco, enrolava muito.

Depois de algum tempo trabalhando de Office Boy fui pegando alguns truques, como pagar contas sem pegar filas, sabia os dias e os horários que os bancos estavam mais cheios, aproveitava o fato de encontrar alguns amigos também Office Boy já na fila do banco para que eles pudessem pagar as minhas contas enquanto eu fazia o resto do meu trabalho, com isso terminava antes do esperado e ficava na praça jogando baralho, truco, pôquer, aprendi a jogar pôquer trabalhando de Office Boy.

Aprendi a pegar metrô trabalhando lá, conheci o centro de São Paulo também e percebi o quanto ele é lindo, mais bonito ainda de noite, porém mais perigoso, vê como quem faz o centro de São Paulo feio não é a cidade, mas sim as pessoas? Por mim eu moraria no centro da cidade, num apartamento, se possível numa cobertura, com uma vista para qualquer avenida movimentada olhando as janelas dos outros prédios. As vezes quando o baralho enjoava, ou o numero de Office Boys reunidos não eram suficiente para uma jogatina íamos para um bar jogar sinuca, as vezes marcava de encontrar alguma garota na praça também, veja quanto tempo eu tinha, dava até para “se pegar” durante o expediente, muitas vezes usava essas garotas para fazer alguns dos meus afazeres para que pudéssemos ficar ainda mais tempo “se pegando” na praça. Aprendi a explorar o trabalho alheio trabalhando naquele escritório.

Algumas vezes jogava dominó com os aposentados frequentadores da praça, mas foram poucas vezes, dominó é mais romântico que baralho, é mais técnico, exige mais tempo. Aprendi a ter um pouco mais de paciência “trabalhando” na praça, aprendi também a ganhar no dominó dos tios e primos em dia de natal ou ano-novo.

Durante algum tempo tentei fazer o que os Office Boys Old School faziam, ir a fliperamas, mas isso exigia muito dinheiro e eu já gastava bastante dinheiro com cigarros então não durou muito e é bom frisar que Office Boy não ganha muito. Aprendi a fumar trabalhando naquele escritório.

Numa dessas jogatinas entre um trabalho e outro eu conheci um mudo, ele era corintiano, por incrível que pareça conversávamos muito sobre futebol não só com ele mas com todos os outros Office Boys, travávamos grandes batalhas de diálogos para convencer o outro de que nossos times eram os melhores e de maior tradição, esses debates levavam horas e horas.

O mudo também já era aposentado e era presença frequente na praça, jogava um truco como nenhum outro, quando pedia truco batia na mesa de cimento e resmungava algo suficiente para entendermos que ele estava pedindo truco, o pedido de “seis” era mais difícil, mesmo assim jogávamos. Nosso amigo mudo era um ex lutador do Gigantes do Ringue, mostrava suas fotos antigas ainda em preto e branco com orgulho, também tinha sido jogador do Corinthians quando mais jovem nas categorias de base, era goleiro. Com o mudo aprendi a não ter preconceitos, pode parecer estranho mas aprendi a ouvir mais com ele e ele “falava” bastante, com ele aprendi a língua dos mudos, libra, aquela que se fala com as mãos, letra por letra. Falávamos mal e fazíamos piada só de sacanagem com os outros pela língua dos sinais, ninguém entendia, só nós, riamos muito com isso.

Mesmo assim, com todos esse aprendizado eu não era feliz lá, não era feliz de verdade. Na verdade foi a época mais triste da minha vida, tudo estava desmoronando, família, amigos, minha vida social, minha vida amorosa, andei usando algumas coisas que não me fizeram bem, e descontava tudo isso nos estudos e professores.

Hoje ainda passo pela velha praça, não vejo mais sinais de ninguém daquela época, nem do mudo.

Não tenho saudades, mas toda vez que passo pela aquela praça me lembro de tudo isso que acabo de contar, e vejo o quanto eu aprendi e como foi necessário eu passar por todo aquele sofrimento e alegria para me tornar a pessoa que sou hoje, bem ou mal, sou o que sou por causa daquela velha praça e aquelas pessoas que jogavam baralho comigo.

Bento.
 
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Um comentário:

Anônimo disse...

- Gostei! =D