segunda-feira, 12 de setembro de 2016

O PEIDO É TÃO PESSOAL E INTRANSFERÍVEL COMO NOSSOS PENSAMENTOS MAIS OBSCUROS

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Quando eu era jovem sempre fiquei intrigado quando ouvia os professores falarem sobre pensadores. Nas salas de aulas cheias de moleques encrenqueiros como eu, e eu era sempre o pior - segundo estes mesmos professores - por que eu entendia que o cara ganhava um salário só para pensar. E lá ficava eu pensando com meus botões, imaginando um cara que colocava seu despertador programado para acordar às seis da manhã, tomava seu banho, ligava a TV no jornal matinal enquanto vestia-se e tomava o café da manhã. Colocava comida para os cachorros, para o gato e ao invés de sair de casa rumo ao emprego como fazia minha mãe e meus irmãos de manhã enquanto eu me arrumava para ir para a escola o pensador simplesmente sentava numa varanda com sua xicara de café e com seu dedo indicador pressionando a têmpora ficava lá, pensando. Soprava a fumaça do café fumegante pensando e anotando as coisas que entendia ser importantes. Então de repente, nota-se a hora do almoço e pronto! Para de pensar um pouco para alimentar-se e uma hora depois voltar ao trabalho. Sempre imaginei isso como a coisa mais chata do mundo, ou pelo menos UMA das mais chatas. Perguntava-me eu, quem em sã consciência, escolheria ser um pensador? Depois de velho fui perceber que trabalhar num escritório enviando relatórios, atendendo telefones, tendo que pegar ônibus e metrô lotados de gente que fazem coisas bem parecidas com as minhas é bem pior que a vida que eu imaginava que o pensador levava.

Mais velho ainda comecei a invejar tanto a vida dos pensadores que passei a desejar uma vida igual. Afinal, trabalhar em casa, para gente como eu que suava frio quando ouvia notícias sobre greve do metrô seria maravilhoso.
No fim descobri que pensador pode ser qualquer um de nós e não necessariamente ganhamos algo para isso. Mais ou menos como a música, nem sempre os melhores são reconhecidos. Com isso cheguei à conclusão que o problema não são os pensadores ou os músicos, ruim mesmo é envelhecer. Tantas ilusões.

Por esses dias peguei uma gripe e me entupi de remédios. Todos aqueles conhecidos que prometem curar a gripe e até um ou outro que consegui clandestinamente sem receita para curar-me. Adiantou momentaneamente, pois cinco dias depois cai de gripe de novo.

Tenho um grande problema com medicamentos e contra eles, pois enquanto os consumo não posso beber e isso é um problema enorme. Está certo que vez ou outra misturei vodca com xarope para curar a gripe e fiquei numa loucura tamanha, mas isso é uma história para contar em outro momento. Por isso só me medico em último caso, pois acredito piamente que não há doença que o álcool não possa curar, com exceção da doença da idiotice, essa... Nem Deus poderia. Enfim, estava com uma gripe longínqua e devido a conselhos familiares e de minha namorada resolvi tomar antigripal e antibiótico. Veja minha situação, sou corintiano desde que nasci, qualquer coisa que envolva a palavra anti já me causa descrença instantânea. Bom, resumindo; claro que não deu certo. Acabou que eu fiquei no remédio, sem beber uma gota de álcool e não melhorei. Mas... E friso o "mas" por que realmente deve-se chamar atenção ao fato. Então, é justo que pare, respire profundamente e se diga, lá do âmago; MAS... bastou uma boa noite de bebedeira com destilado e escrita para a coriza recolher-se ao nariz, a garganta dar a pausa à tosse e tudo mais ir pra casa do caralho. Tem gente que não acredita. Acha exagero. Acha que é mentira de bêbado, porém afirmo que nunca tive uma doença que o álcool não curasse.

Pensando nisso, enquanto doente e tomando minha cagibrina, lembrei que a muito não parava para beber sem preocupação. Digo, de pausar qualquer pensamento mesmo. Sem pensar em contas, em relações, em trabalho. Apenas sentar, beber e sair escrevendo. Reparar em cada aranha que faz moradia nos cantos do quarto. Em cada mancha de umidade. No barulho do motor da geladeira da vizinha. No salto alto da nora da outra vizinha quando ainda vira a esquina, que chega de madrugada voltando da balada, e logo depois pega o molho de chaves na bolsa para abrir o portão. Os carros que passam e raspam o assoalho na lombada. E os gatos correndo brincando no telhado. E no momento que escrevo isso lembro de quando adolescente, quando trabalhava de office-boy sonhava em estar em casa, ouvindo Frank Sinatra, com a chuva de dez dilúvios batendo na janela, frio de matar, e eu dentro de casa tomando uma boa xícara de café preto para esquentar o corpo vestido de calça de moletom e seres me pagando só para escrever. Vê que desde muito jovem eu era velho e solitário? Nunca fiz questão de companhia. Nunca me senti sozinho comigo mesmo. Sempre tive algo para reclamar, é claro, afinal escreveria sobre o quê? Mas sempre fiz questão de manter-me sozinho pois minha companhia sempre me foi suficiente. Evidente que vez ou outra você precisa da companhia de outras pessoas para que não passe a vida dependendo de uma alegria masturbatória, uma mão amiga vez ou outra é indispensável. Porém a solidão assusta a maioria das pessoas. Hoje em dia solidão demais é confundida com depressão, não sei se por influência da indústria farmacêutica, da mídia ou dos analistas, mas acho que subestimamos uma boa solidão, estar só, falando apenas consigo mesmo, e desvendando nossos próprios segredos. Tem gente que se assusta com seus próprios pensamentos e por isso tenta sempre estar rodeado de pessoas. Se o sujeito não consegue se abrir com ele mesmo, algo está errado. Quer um exemplo? Somos tão mais tolerantes com nosso peido que com os dos outros, claro. Peidamos debaixo das cobertas e cobrimos a cabeça. Cheiramos nossos gases e damos risada. Já qualquer flatulência alheia nós achamos o fim do mundo, pois o peido é tão pessoal e intransferível como nossos pensamentos mais obscuros, mas ainda assim dividimos com poucos que conquistam nossa confiança.

Digo mais, passei meses segurando peido no começo de meu namoro. Tanto que por várias vezes tive que sair do quarto só para peidar e era um alívio do tamanho do mundo. Hoje, ainda bem, eu e minha namorada dividimos nossos peidos como dividimos uma mesa num restaurante, ou uma pizza.

Sendo assim, acredito piamente que a solidão nos ensina humildade. É preciso reconhecer nossos defeitos para lidar com o defeito dos outros, qualquer coisa diferente disso se transforma em hipocrisia. Então depois disso tudo, digo para aqueles que ainda permanecem descrentes com a solidão, friso que a pior solidão não é aquela que você sente quando está só, num quarto escuro ouvindo blues e tomando algo forte. Ou quando se está numa cabana no meio do mato tomando café e relendo um livro clássico. Não é a solidão de término de namoro onde se fica em casa comendo chocolate e assistindo comédia romântica, nem a solidão de uma prisão tão pequena que mal consegue ficar ereto. Não, pois esse tipo de solidão tem também a ausência de esperança. Você não espera nada dela. É tão somente você e um grande vazio. Assim ficamos alheios a tudo, nada pode nos atingir. Somos invencíveis, inabaláveis, imortais e inatingíveis.
Digo que a pior solidão é aquela que sentimos quando estamos no meio de uma multidão ou num relacionamento de via única. Quando percebemos que o próximo não tem tanto interesse em nós como temos deles. Afinal, nestes casos, a solidão vem junto da frustração de esperar e esperar que o outro indivíduo sinta prazer de sua companhia e se alegre pelo simples fato de te ver feliz. Essa solidão, sequer um mar de whisky poderá dar jeito.



Bento.