Imagem de Apollonia Saintclair
É terça feira e ouvi dizer que é outono. Cago para essas coisas pois as pessoas fedem nas quatro estações do ano. Se duvida pegue um transporte coletivo todos os dias e verá. Outro dia peguei um ônibus com um cara que exalava um fedor azedo que ardia os olhos e as narinas. Mas não é só por isso que digo, as pessoas, num todo fedem. Todas elas. São animais em busca de presas fáceis. Eu já fui uma delas durante dois anos sendo mastigado e tendo meu sangue sugado aos poucos, de canudinho, por alguém que dizia ser a pica das galáxias e tão fiel quanto um fígado. Engano meu é claro. Bastou que o fornecimento de sangue acabasse para este ser humano, se é que podemos chamar assim, mostrasse sua verdadeira identidade. Suas verdadeiras intenções. Bom, logo após troquei de cama para tirar aquele fedor, como quem abrigou um leproso. As pessoas fedem à ponto de, com o tempo, eu sentir seu cheiro de chorume de longe. Desenvolvi uma técnica e sinto o cheiro de podridão no instante que elas entram em meu raio de ação. Não é à toa que tenho tantos corpos em minha conta. Ninguém começa a fazer o que faço do nada. Não se acorda um dia e resolve sair acabando com a escória do mundo. Só se você for um psicopata, mas não eu. Eu só estou livrando o mundo deste odor podre que não vale a bosta que caga.
Interrompo o devaneio porque já é tarde e preciso terminar um relatório. Lembro que não como uma refeição decente desde sábado de tarde, mas nesse meio tempo já matei duas garrafas de whisky. Saindo daqui compro mais uma já que as minhas acabaram segunda de manhã.
Termino meu trabalho e resolvo que não posso voltar para casa de estômago vazio. Mas cheiro de comida, fritura, comidas habituais me embrulham o estômago. Por isso quase não como. Meu organismo pede algo saboroso. De dar água na boca, salivar até ter de engolir.
Paro no bar com a garrafa que comprei. Deixo no balcão e peço uma boa dose de whisky. Gostaria muito de comer algo, mas no bar, aqueles salgados fritos de manhã me encaram com cara de que já foram servidos às moscas durante o dia inteiro. Não como restos de insetos. Meu estômago ronca, mas não dou ouvidos a ele. Sou mais amigo do fígado como já disse. O balconista me serve com cara de bunda, talvez preferisse estar em outro lugar. Eu também, mas nem por isso destrato as pessoas. Só não gosto de sorrir muito. Em dois goles mato o whisky e parto. Fome, muita fome, mas o cigarro ajuda a amenizar.
Vi na TV essa história da carne e me embrulha o estômago, já não sou fã de comer, porém, carnívoro incurável que sou, sobra o quê? Nada como um belo bife para animar o dia. Estão querendo tirar até isso de nós.
Já é tarde. Poucas pessoas na rua. Preciso inventar algo para comer antes que desmaie por aí e me confundam com algum mendigo. Qual sabor deve ter mendigos? Penso. Apesar que entre comer mendigos e carne com papelão, fico com fome. Estou na rua de casa. É terça e uma garota desce a rua de salto, mas com pressa. Talvez assustada com minha presença àquela hora da noite. Ela se agarra à bolsa como se fosse seu bem mais precioso, muito por achar que sou um ladrão, provavelmente. Nem meu terno e minha barba feita ajudam neste momento. Penso que ser mulher complica tudo. É ameaça vindo de todos os lugares. Sempre odiei aqueles caras que acediam mulheres em vagão de metrô, em bares e etc. Ela usa uma calça social e um coque já bagunçado. Vejo certa dificuldade em andar tão depressa pela calçada acidentada. Imagino ela caindo e um sorriso vem no canto da minha boca. Seria engraçado para terminar um dia tão estressante. Olho para trás e ninguém. Ao lado, fábrica e comércio. À frente uma caçamba e uma praça mal iluminada. Meu estômago ronca e o pescoço branco da garota andando toda torta à passos rápidos pisca toda vez que ela passa abaixo de um dos poucos postes que tem na rua. Tenho fome e lembro da matéria que vi no jornal. “Mulher morta encontrada sem parte do seio”. Penso, por que não?
Uma grande pedra para amassar o crânio. Um pedaço de vidro para arrancar um pedaço do seio direito. Tudo cedido pela caçamba que provavelmente foi colocada por Deus em meu caminho. Com a fome que estou, poderia comer crua mesmo. É de lamber os lábios. Pequenas tetas sangrentas em minha mão e só por isso não julgo o assassino que mordeu o seio da garota morta. Ao invés disso coloco o bife na sacola junto do whisky e caminho para casa. Finalmente uma refeição depois de dias.
Bento.
Imagem de Apollonia Saintclair
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