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É verdade eu morri.
Fui expelido do meu próprio corpo.
Fiquei sem moradia e, fiquei ali ao lado, como a me olhar no
espelho, sem ter o reflexo me olhando de volta.
Acompanhei o encontro do defunto ali, largado no chão, o
desespero por ajuda, a procura do primeiro telefone a chamar o S.O.S. A chegada
dos enfermeiros delivery, sua luta para reviver-me. Assistia tudo como em
câmera lenta, em slow-motion, como um replay, um tira-teima.
A massagem cardíaca de inicio compassada como um
percussionista, depois levado ao desespero com golpes fortes, quase uma surra.
Uma surra real. Nada.
O rosto do enfermeiro-motorista no último golpe, revelando a
falta de esperança me trouxe ao que eu já sabia. As pessoas em volta começaram a
chorar, soluços, gritos, berros, abraços, desespero. Até os cachorros percebiam
o final e uivavam, não sei se tristeza ou em homenagem póstuma. O lençol branco
jogado em cima do meu corpo tapou minha visão, já não me olhava no espelho.
Olhei em volta e via que algumas pessoas não choravam, não que não sentissem a
dor do fim, mas se reconfortavam no fim do sofrimento. Eu queria sair dali e ir
para o primeiro bar que encontrasse, mas não abandonaria meu corpo, não agora,
nessa última vez. Chega de abandono.
Vi o saco preto na mão do enfermeiro, dobrado, prestes a
engolir meu corpo, a maca. Literalmente fui para o saco, me levaram para a
ambulância, fui junto, ali ao lado, minha mão sobreposta ao meu próprio peito
por cima do tecido preto, assim sem sirene, com um silêncio fúnebre, o motorista
já não tinha mais pressa.
Acompanhei o velório. Meu corpo colocado dentro daquela
caixa horrível de madeira, me senti o próprio Drácula em seu sono diurno. Sempre
disse brincando quando vivo, que não queria ninguém chorando em minha morte, mas
sim fazendo festa, sempre preferi festas, sempre odiei velórios e enterros, gostaria
que o meu fosse diferente. Porém as pessoas não conseguem fazer festa nesta hora,
é muita dor, dor que fica, eterna. Dor do nunca mais, dor da última vez.
As
pessoas passando ao lado do caixão e logo faziam o sinal da cruz como um
cacoete, um TOC. Família, amigos, conhecidos, desconhecidos, amantes. Eu
esperava uma visita em especial, como uma última visita, um adeus final, mas
não. A causa da minha morte não veio, talvez por pena, por culpa, por receio de
ser apontada e acusada. FOI VOCÊ!
Talvez porque não desse a mínima.
As crianças sendo poupadas da visão para evitar os pesadelos
noturnos, ou para guardar uma última imagem agradável. Alguns adultos se
poupavam de ver pelos mesmos motivos.
Seguimos então para o enterro, a fila de carros era maior do
que eu esperava. Andei de ônibus a minha vida inteira, ali tinham carros para
um mês todo, sem repetir nenhum, eu ainda ao meu lado, a caixa agora estava
selada, com duas bandeiras cobrindo-me, uma do meu estado, outra do meu time do
coração, como um cobertor a me agasalhar.
A terra do cemitério com seu barulho peculiar ao arrastar dos
sapatos, curioso como o cheiro de cemitério não se compara a nenhum outro,
mesmo se não houvesse cruz, nem covas, ainda assim saberíamos que estávamos num
cemitério só pelo cheiro e silêncio, o vento do cemitério não é o mesmo vento
dos bosques, das hortas, das praias, é um vento penoso.
Ouviam-se orações baixinhas, como jogador cantando o hino
nacional numa competição internacional, só se via a oração pelos lábios mexendo
de longe. Choro, ainda choro.
Sempre quis uma música nesse último momento, vi a chegada de
um violão, muitos se abraçavam, outros de costas, não queriam ver, outros
ajoelhados, outros cochichavam. Os amigos mais fiéis fumavam de desespero e
homenagem, até os que não tinham o vício fumavam em homenagem.
O primeiro acorde
deu vida a música, logo, alguns deram mais ênfase ao choro por se tratar da música
que eu mais me identificava e que as pessoas me identificava também na canção. Eu
já aquecendo a voz para cantar na frente daquela plateia toda, como costumava
fazer, mas ninguém poderia me ouvir, lembrei.
Mesmo assim cantei:
Ando tão à flor da
pele
Qualquer beijo de
novela me faz chorar
Ando tão à flor da
pele que teu olhar flor na janela me faz morrer
Ando tão à flor da
pele que meu desejo se confunde com a vontade de não ser
Ando tão à flor da
pele que a minha pele tem o fogo do juízo final
Alguns cantavam baixinho como a oração, outros cantavam alto,
desafinados como um desabafo, com raiva, perguntando por quê? Por que agora,
tão cedo? Alguns batiam palmas ritmando a canção, o canto para minha morte. E
eu ali ao meu próprio lado percebi que não tinha cigarros. Mas que hora para
ficar sem cigarros, hein? Percebi que ninguém me ouviria dizer: Ei! Alguém tem
um careta aí? Contentei-me com a canção.
Avistava até alguns inimigos, mais afastados talvez com medo
de serem delatados inimigos. VOCÊ NÃO
GOSTAVA DELE! Foi quando vi que até os inimigos me respeitavam, vieram
prestar a homenagem, inimigos também se respeitam. Às vezes até mais que os
amigos.
Um barco sem porto,
sem rumo, sem vela
Cavalo sem sela
Bicho solto, cão sem
dono, menino bandido
Às vezes me preserva
noutras... Suicídio.
A maioria das pessoas não cantaram a última palavra, medo?
Havia a possibilidade, ninguém queria acreditar ou aceitar, mas havia.
Fim da canção, último acorde tocado com um cuidado
exagerado, uma lentidão exagerada como um "Continua", como um "aguarde
cenas do próximo capítulo". Curioso que eu chorão do jeito que sou não
tinha derrubado sequer uma lágrima, seria eu incapaz de chorar por mim mesmo?
Seria egoísmo? Logo eu que chorava até em episódio do Chaves, não choraria em
meu próprio enterro? E eu ali do meu lado, só não de mãos dadas pela impossibilidade
que a caixa de madeira teimava em me impor.
Vi que acima das bandeiras colocadas
com cuidado em cima da caixa havia algumas fotos minhas com algumas pessoas que
estavam ali presentes, mas uma ou duas delas tinha a presença da tal visita que
nunca chegara, foi quando derramei a primeira lágrima, agora era tarde!
Eu seria enterrado, jogariam terra em mim, e só teria a
companhia dos vermes, minhocas, e outros habitantes insetos a me beijar. Agora
era tarde demais, 45 minutos do segundo tempo, sem acréscimos, final de
campeonato, meu último campeonato, e eu, com certeza não era o vencedor, não
levantaria o troféu. Não era o capitão de minha própria vida ou morte. E a visita
não chegaria. O choro, a coroa de flores, as bandeiras, a canção, trocaria tudo
por uma última visão, uma última imagem, queria ver se haveriam lágrimas em seus
olhos, não foi possível, me enterraram. A luz do sol já não era visível, mesmo
o fato de eu não ser enterrado junto com meu corpo, ainda assim me faltava luz,
já não via mais sol, nem lua. Sempre gostei da noite, mas isso era um exagero,
gosto também do sol, mas ele nunca mais foi o mesmo. Morto, igual ao meu corpo.
Algum tempo depois...
Digamos que renasci, não sou Jesus, calma. Aquele meu antigo
corpo está e sempre estará enterrado. Ganhei um novo, totalmente diferente, com
defeitos novos, os antigos deixei para trás, não quero morrer de novo, apesar
de saber que será inevitável, vou tentar evitar com unhas e dentes.
Renasci uma pessoa diferente, o mesmo rosto, os mesmo
documentos, mesmos familiares, alguns amigos novos, alguns antigos amigos se
foram com minha morte, foi muito para eles, inimigos que se tornaram amigos e
vice-versa. Sem esse clichê de que agora estou mais forte, sou tão mortal como
fui antes de morrer, sou apenas diferente.
Aquela visita que eu tanto esperava, nem agora depois de vivo
tive, no entanto, acho que é melhor mesmo, afinal, pode ser que ela me leve à
morrer de novo.
Percebi uma coisa também, depois de me ver enterrado, todas
as pessoas foram embora, continuaram com suas vidas. Algumas lembrando de
tempos em tempos, outras só na data de minha morte ou na data do meu
nascimento, outras nem lembravam mais. Mas percebi que continuaram com suas
vidas, justo!
Mas fiquei ali pensando... E tive muito tempo para isso.
Percebi que o único a estar ali, perto, ao lado, de mãos
dadas o tempo todo era eu. Como sempre foi.
Bento.
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