- Roger! Rooooooger. Traga mais uma aqui, filho. Não vê o
calor que está? Quer matar seus únicos fregueses?
Não tinha muito tempo que o dia tinha clareado e estava tão
calor que um pequeno facho de sol que pegava na minha perna nua fazia exalar
cheiro de pelo queimado. Tão cedo e Lincoln já gritava como se estivesse
acordado há horas. Algumas pessoas são assim, levantam da cama falando alto e
cantarolando e contando piadas e isso me deixava extremamente mais estressado,
além do fato de ter que acordar. Não necessariamente acordar, mas levantar. Eu
preciso passar por certas rotinas antes de despertar. Eu levanto mas não estou
desperto.
Primeiro eu levanto, dou uma boa mijada ainda com o pau duro
e sempre preciso enxugar o chão e a privada dos resquícios de urina. Nisso eu
já acendi meu cigarro, dou um belo trago e encho uma boa caneca de café. Não é
que eu ame café, porém eu gosto mais de café que acordar. Só que este dia em
especial estava um calor de três infernos, fato que me fez acordar transpirando
como se estivesse acabado de transar com duas garotas adolescentes bissexuais e
ninfomaníacas. O café quente rasgava a minha garganta e eu só consegui beber
meia caneca. Depois disso preferi abrir uma cerveja e todos sabem que depois da
primeira fica bem difícil parar. Meus olhos ainda estavam grudados e ardendo e
a cerveja não durou cinco minutos. Foi como beber um copo d'água, só que
melhor. Não sei se foi a cerveja ou o café mas me deu vontade de cagar e por lá
fiquei quase meia hora, não cagando, claro que não, mas é impossível cagar e
não fumar um cigarro, desta vez eu fumei dois.
Finalmente lavei o rosto e escovei os dentes e lembrei que
tinha muitas coisas para resolver e estava muito quente para resolver qualquer
problema. Alguém uma vez disse que o que não tem remédio remediado está. Para
todas as outras acreditei que não haveria problema esperar até o próximo final
de semana. Vesti uma camiseta e fui até o bar do Roger. Foi onde encontrei
Lincoln de bom humor e fiquei indignado. O bar do Roger era um boteco
gorduroso, contudo a cerveja era barata e estava sempre gelada. Por causa da
umidade das paredes o cheiro de mofo era grande mas funcionava como um
ar-condicionado natural. Mesmo assim estava bem quente. Sentei em uma das mesas
e Lincoln veio sentar comigo.
- Cara, faz tempo que você acordou agora? Hahaha. Ele
perguntou
Lincoln tinha disso. Era um bom beberrão mas sempre tinha
essas piadas prontas na ponta da língua. Eu me limitei a tentar um sorriso
mudo.
- Noite difícil? Ele insistiu.
- As noites nunca são difíceis, as manhãs sim. Respondi.
- É o que eu sempre digo, cara. Ele disse.
Eu nunca tinha ouvido Lincoln dizer aquilo, sequer me
lembrava de ter dito aquilo alguma outra vez em toda a minha vida, mas se ele
estava dizendo.
- Mas melhora essa cara que eu tenho uma boa notícia, foi
até bom te encontrar aqui. O que vai fazer hoje? Ele perguntou.
Nisso o Roger já tinha trazido um copo e uma garrafa de
cerveja tão gelada que saia fumaça e amaciava as cordas vocais. Tão gostosa que
eu quase fiquei de pau duro com aquela cerveja. Mal ouvia o que Lincoln dizia
então respondi no instinto.
- Bom, vou beber até ficar com fome, depois vou pra casa
almoçar e dormir até acordar para continuar bebendo, talvez escrever um pouco.
- Que isso, cara? Sabe que sou seu amigo e não vou te deixar
nesse programa de índio não - Lincoln pegou o celular e com os dedos ágeis,
muito ágeis para àquela hora da manhã, apertou o telefone até achar o que
queria – está vendo esta garota? Estou comendo, cara.
Olhei para a garota e posso dizer que poucas vezes na vida
vi algo tão grande. Bochechas que caía sobre uma papada enorme que caía por
cima de algo que imaginava ter sido um pescoço um dia e peitos, peitos
gigantes, uma enormidade de peitos, tetas do tamanho de balões daqueles de
festas que enchiam de balas e estouravam quando estávamos abaixo disputando
quem pegava mais balas e pirulitos e guarda-chuvas de chocolate que na verdade
não passavam de gordura hidrogenada.
Era um amontoado de banha e carne e barriga e gordura e
tetas e cabelo, tanto cabelo quanto um ralo de banheiro público. Mas o cabelo
não era de todo ruim, pois só por causa dele que pude com muita dificuldade
identificar aquilo como uma mulher e também pelo fato de Lincoln mostrar aquela
imagem assombrosa logo após chamá-la de garota, e pior, que ainda estava
transando com a tal. Entendam a minha indignação e podem me julgar depois. Mas
Lincoln era um sujeito baixo, talvez um ombro mais baixo que eu, porém tinha
uns trinta quilos a mais. Conhecia Lincoln desde a época de escola e ele nunca
fora um dos primeiros a ser escolhido para jogar futebol nem qualquer atividade
que exigisse o físico. Lincoln também não era dos mais inteligentes, porém isso
não vem ao caso. Lincoln era obeso. Não um gordo esparramado, contudo tinha uma
barriga que não tinha muito orgulho de mostrar por aí. Eu nunca passei dos 65
quilos, logo, não serei eu a explicar de que forma dois serem humanos com tanta
massa corpórea podia praticar o ato sexual. Tentei imaginar mas foi em vão.
- Sentiu o nível? E vou te ajudar, podemos marcar algo em
casal. Lincoln disse.
- Cara, realmente...
- O que foi? Está sem mulher pra hoje?
- Pois é... Eu disse e ergui o braço para Roger trazer mais
uma garrafa.
- Essa eu pago, Roger. Disse ele - Não tem problema, cara.
Ela tem uma irmã.
- Não leva a mal, Lincoln, mas como é exatamente o corpo
desta irmã?
- É gostosa igual, cara. Ele respondeu.
Roger trouxe a cerveja e Lincoln mostrou a foto para ele.
Roger era casado e tinha três filhos no espaço de três anos, portanto fazia
tempo que ele via sua mulher com o corpo volumoso e mesmo assim ele assustou-se
ao ver o monte de coisa denominado mulher por nosso amigo.
- É, Lincoln. Essa deve dar trabalho. Ele disse em tom
irônico e Lincoln orgulhoso não percebeu. Tanto que não sei se seu rosto ficara
vermelho por causa da cerveja, do sol, do orgulho de macho comedor, ou se ele
sempre tivera o rosto vermelho e eu nunca tinha percebido.
- Olha, Lincoln - servi os dois copos com cerveja - eu vou
passar essa. Tenho mesmo que escrever. Eu disse.
- Porra, Bento. Você precisar viver para escrever as coisas,
entende? Ele disse.
- Eu já tenho traumas suficientes para escrever durante a
vida toda. Não preciso de mais um.
Eu não queria estragar o barato do gordinho falando que
tinha achado a garota dele uma grande massa de banha com olhos. Estava me
segurando como quem segura a urina depois de meia dúzia de cerveja, mas aos
poucos eu ia escorregando.
- Não fala besteira, Lincoln. Para escrever vasta ser
criativo, ou você acha que o Spielberg
viu mesmo o E.T? Disse Roger.
- Porra, Roger. Mas ele é o Spielberg. Disse Lincoln dando mais ênfase no Spielberg que o
necessário para eu entender o sentido da sua insinuação - Vamos combinar que
nosso amigo aqui não vai escrever nenhum Scarface.
- Ei! Eu disse.
- É! - Roger disse - Não foi Spielberg quem escreveu Scarface, foi o Scorsese.
- Não foi o Scorsese,
você deve estar confundindo com Goodfellas.
Eu disse.
- Mas quem fez esse não foi o Tarantino? Lincoln perguntou.
- Não fala merda. Tarantino
não tinha nem pelo no saco nesta época. Pulp
Fiction que é do Tarantino. Roger
disse.
- Porra, adoro esse filme. Disse Lincoln - Mas eu achava que
era de um tal de Brian de Palma.
- Brian de quê?
Roger perguntou pra mim.
- Não faço ideia. Eu disse - Mas foda-se! Do que é que vocês
estão falando, caralho? Quantas vezes leram algo que eu escrevi?
Ambos balançaram a cabeça negativamente.
- Mas você não me parece o cara mais esperto do mundo, vamos
combinar. Disse Lincoln.
- Vai se foder. Não era eu que colava nos ditados da escola.
Eu disse.
- Isso faz muito tempo. Lincoln disse.
- Foda-se! Eu retruquei. Matei a cerveja que estava no copo
e continuei - E quer saber? Sua mina é gorda pra caralho! Eu prefiro mil vezes
bater uma bem batida que comer uma gorda dessa.
Roger arregalou os olhos e pediu calma.
- Mas só o que você faz é bater punheta. Disse Lincoln.
- Foda-se! Eu disse.
- Foda-se! Disse Lincoln.
- Vou buscar mais uma cerveja e beber com vocês. Disse Roger
para amenizar a situação.
- Traz um Dreher que esse assunto me estressou. Lincoln
disse.
- Põe na minha conta. Eu disse.
Roger voltou e continuamos falando sobre qualquer coisa.
Filmes, mulheres, o calor infernal. Falamos de futebol e ameaçamos discutir
novamente. Quero dizer, quase discutiram Roger e Lincoln, pois comigo nenhum
deles tinha este privilégio. Estávamos muito bem no campeonato. Eu assistia,
molhava a garganta e gargalhava das besteiras que falavam. Nesta altura eu já
estava acordado mas minha barriga começara a roncar e minha bexiga deu sinal de
vida pela primeira vez. Até que adentrou um sujeito que Roger teve que
interromper a conversa para atendê-lo. Sujeito estranho aquele, àquela hora no
bar para comprar cerveja. Todos ali na vila já tinham lhe visto, mas acredito
que quase ninguém se lembrava de seu nome. Roupas caras, de marca, porém muito
velhas. Dava a sensação de que tivera dinheiro um dia e por um acaso ou uma
decisão errada perdera tudo. Lincoln e eu paramos de conversar para observá-lo.
Alto e magro, jovem com aparência de velho, cabelo penteado pro lado. Lincoln
me cutucou com o pé por debaixo da mesa e com o queixo apontou o tal sujeito
falando baixo.
- Telemarketing, esse aí.
- Sério? Questionei.
- Certeza. Quem falou foi o Miltinho. Diz que ouviu uma
conversa dele ao telefone. Sem querer, é claro. Ele disse.
- Sabia - Eu disse - Está muito na cara.
- Não tira essa roupa. Não deve ser bom vendedor. Ele disse.
- Pobre coitado - Bati três vezes na madeira com o nó dos
dedos - Deus me livre.
Lincoln balançou a cabeça perplexo. No mundo em que vivemos,
não se pode ser um perdedor assumido. As pessoas precisam fingir-se de
vencedoras. Todos estão felizes e tudo é maravilhoso. O problema daquele
sujeito era a tristeza impregnada em seus olhos. As roupas que denunciavam seu
passado vigoroso. Era um jovem que perdera as esperanças. Desistiu.
Ninguém pode desistir em nossa sociedade, pelo menos não por
aqui. Tudo se baseia em você ter sempre um sorriso a tiracolo para dar ao
vizinho, ou ao caixa do supermercado, ou a sua tia que você só vê em datas
comemorativas que é quando ela confunde o nome da sua antiga namorada pela que
veio antes. Temos que sorrir aos carteiros e testemunhas de Jeová. Temos que
ter ternura e sorrir para bebês, mesmo os feios e sujos e catarrentos. Mau
humor é para os jovens e rebeldes e presidiários e homens superpoderosos. Nós
não podemos demonstrar fraqueza nem mau humor simplesmente porque a vida é
maravilhosa e se ninguém reclama quem você acha que é para se sentir com este
direito?
Então o tal sujeito pegou duas latas da cerveja mais barata.
Uma ele colocou na mochila que levava pendurada no ombro apenas por uma das
alças, a outra ele abriu e deu um grande gole. Pagou com notas amassadas e
moedas.
- Bom dia. Por um acaso vocês não teriam um cigarro? Ele
dirigiu-se a nós.
Lincoln serviu-o do seu maço de Hollywood com prontidão.
- Pode pegar. Ele falou.
- Obrigado. Disse o sujeito e partiu.
- Lamentável. Lincoln disse.
- É... Eu disse.
Bento.