É curioso como podemos fazer coisas repetidamente, todos os
dias, mecanicamente e nunca nos darmos conta. Como um aparelho doméstico,
funcionando e funcionando e é só. Dias atrás eu me vi no meio do caminho para o
trabalho e sequer me dei conta de como fui parar ali. Simplesmente parei e
pensei; mas como foi que vim parar aqui? Olhei-me e estava vestido, com as
chaves, cigarros e celular no bolso, tudo em ordem. Cabelo penteado, passei a
língua nos dentes e estavam escovados, mas eu não me lembrava de ter feito nada
disso. Digo, lembro-me de acordar e acender um cigarro e depois disso PUFF!
Qualquer memória foi pro saco, como se eu estivesse ficado bêbado e aparecido
ali, acordado do porre ali. Só que era de manhã e eu estava indo trabalhar.
Tudo daquele momento para trás se perdeu. Não lembrava dos cigarros que fumei,
nem das canecas de café que tomei. Não lembrei de ter cagado, de tomar banho,
de pegar o ônibus ou o metrô, de nada. Estava ali automaticamente, fiz o
caminho inconsciente porque eu faço todos os dias. Não lembro da cara de cu do
cobrador, não lembro dos velhos que fazem questão de acordar cedo e encher o
transporte coletivo. Não lembro dos gordos que ocupam o dobro de espaço num
transporte que já não cabe mais ninguém. Não lembro se li meu livro, se usei o
banheiro da estação. NADA. Só lembro de estar ali, no meio do caminho para o
trabalho como faço todos os dias. Um lapso? Seria loucura? Finalmente minha
mente estava pedindo, ou clamando, por uma aposentadoria? Então meu corpo
vagaria por aí sem mim ou sem minha mente, ou eu seria apenas um passageiro de
meu corpo, sentindo, vendo, cheirando, porém sem controle nenhum sobre qualquer
músculo. Com consciência, mas sem autonomia. Espectador da minha própria vida.
O interessante é que meu corpo, em carreira solo, possivelmente teria mais
sucesso que eu (quem não teria?). Talvez eu esteja com dislexia. Talvez eu
esteja morto sem me dar conta, mas as contas continuam chegando, então estou
vivo, pois os cobradores são os primeiros, a saber, das nossas vidas ou mortes.
Reparei que quando me dei conta do meu lapso eu estava andando rápido, quase
correndo, mas por quê? Bem, estou sempre atrasado e também estava naquele dia,
mas se sempre estou atrasado então qual a diferença? Correr por quê? Aliás,
esta é uma pergunta que eu vivo me fazendo e eu não consigo responder nunca.
O Tédio. O Tédio e as outras coisas. Por quê? Pra quê?
Acordar por quê? Levantar pra quê?
Por que comer se daqui a pouco estarei com fome novamente?
Por que tomar banho? Por que tenho que sair de casa? Por que levantar da minha
cama? Trabalho todos os dias, de segunda à sexta, o mês inteiro, pago as contas
e começo tudo de novo, por quê? Pelo final de semana? Trabalho exclusivamente
pelo final de semana. É nisso que minha vida se resume? Trabalho e final de
semana. Uma semana toda de martírio para poder passar o final de semana todo na
minha cama esvaziando garrafas. Pra quê? Por quê?
As pessoas são decepcionantes, a vida é decepcionante.
Talvez você ainda não tenha passado por situações ruins suficientes para
perceber que nenhum de nós vale o esforço de um pequeno músculo sequer. O
curioso é que todos nós nos superestimamos. Sempre achamos que somos um pedaço
de carne selecionado por Deus. Inventamos que existe alma apenas para nos
sentirmos importantes, só que somos só um amontoado de carne, banha, pus,
tripas, tudo isso misturado com altas doses de egocentrismo. Todo homem acha
que seu pinto é maior e melhor que os dos outros. Toda mulher acha que trepa
melhor que todas as outras. Tem caras que gastam o que não tem para comprar
carros enormes e caros para se sentirem mais e melhor. Mulheres que colocam
silicone e passam horas no salão de beleza tentando ser a droga de uma boneca
inflável ambulante. E aí você pensa; o cara se resume a dois braços musculosos.
Tudo bem se você preferir um pedreiro em tempo integral, tudo é uma questão de
gosto. Tudo bem se você prefere comer uma garota com os glúteos tão rijos
quanto seu pau. Tudo é uma questão de gosto. Mas é exatamente aí que você
começa a perceber que a vida já não representa grande avanço e que as pessoas
não estão demonstrando seu melhor. É uma mecânica que eu particularmente não
aprovo, se é que aprovo qualquer coisa mecânica.
Enquanto isso vou escrevendo no ritmo que a inspiração
mandar. Esperando a falência do mundo como espero do fígado. Vivo a vida em
meia dúzia de latas de cerveja por vez. Exercitando a arte de menosprezar a
humanidade e lamentar por estar certo. Vejo pernas e bundas e peitos passeando
pelas calçadas. Pedaços de carne, por vezes suculentas, mas na maioria não
passa de banha crua e molenga. Poucos cérebros, pouca consciência, nenhuma
aptidão para tomar as rédeas de suas próprias vidas. Transeuntes vegetativos.
Zumbis babando e escarrando e cagando. Não mais que isso. Um exército, se
prestar bem atenção, não passa de uma massa de gente, um exército de seres
repetindo gestos, imitando falas, frases e comportamento. São coadjuvantes da
vida real, não se fazem notar.
Conversando com um amigo uma vez, ele me contava sobre uma
transa que teve com uma garota. Ela despiu-se e deitou na cama de pernas
abertas. Este meu amigo olhou a garota branca como um palmito e seu corpo não
era tão diferente. Nada de peitos, o pouco de bunda que tinha a posição que ela
escolhera não favorecia. O maior volume de carne que tinha em seu corpo estava
na região do abdômen e o que foi bem pior, quando pensou em levantar suas
pernas para ensaiar um frango assado pode reparar em restos de papel higiênico
picados como quem limpou a bunda depois de cagar com uma marca de papel da bem
vagabunda. Bêbado como estava na hora, ele pensou; já que estou aqui...
Bem, meteu-se dentro de uma camisinha e como um cientista
maluco com sua veste protetora entrou de cabeça naquele mundo subterrâneo. Fico
eu aqui pensando com meus botões; ainda não inventaram camisinha ou nada parecido
que protege contra a humanidade, além da solidão.
Bento.
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