sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Memórias Póstumas de Bento (Reedição).

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Texto publicado na coluna Fala Bento! na Worknet. 03/09/2010

É verdade eu morri.
Fui expelido do meu próprio corpo.
Fiquei ali ao lado como à me olhar no espelho, sem ter o reflexo me
olhando de volta.
Acompanhei o encontro do defunto, largado no chão, o desespero por ajuda, a procura
do primeiro telefone a chamar o S.O.S. A chegada dos enfermeiros delivery, sua luta para
reviver-me. Assistia tudo como em câmera lenta, em slow motion, A massagem cardíaca de inicio compassada como um percussionista, tornou-se desesperada com golpes fortes, quase uma surra. Uma surra real. Nada.

O rosto do enfermeiro-motorista no último golpe, revelando a falta de esperança mostrou-me o que eu já sabia, as pessoas em volta começam a chorar, soluços, gritos, abraços, desespero. Até os cachorros percebiam o final e uivavam, não sei se tristeza ou em homenagem póstuma. O lençol branco jogado em cima do meu corpo tapou minha visão, já não me olhava no espelho. Olhei em volta e via que algumas pessoas não choravam, não que não sentissem a dor do fim, mas se reconfortavam no fim do sofrimento.
Eu queria sair dali, mas não abandonaria meu corpo, não agora, nessa ultima vez. Chega de abandono.
Vi o saco preto na mão do enfermeiro, dobrado, prestes a engolir meu corpo, a maca,
literalmente fui para o saco, me levaram para a ambulância, fui junto, ali ao lado minha mão
sobreposta ao meu próprio peito por cima do tecido preto, assim sem sirene, com um
silêncio fúnebre, o motorista já não tinha mais pressa.

Acompanhei o velório, meu corpo colocado dentro daquela caixa horrível de madeira, me
senti o próprio Drácula em seu sono diurno, sempre disse brincando quando vivo
que não queria ninguém chorando em minha morte, mas sim fazendo festa, sempre
preferi festas, sempre odiei velórios e enterros, gostaria que o meu fosse diferente
mas as pessoas não conseguem fazer festa nesta hora, é muita dor, dor que fica, eterna.
Dor do nunca mais, dor da última vez. As pessoas passando ao lado do caixão e logo
faziam o sinal da cruz como um cacoete, um TOC, família, amigos, conhecidos,
desconhecidos, amantes. Eu esperava uma visita em especial, como uma última visita
um adeus final. A causa de minha morte não veio, talvez por pena, por culpa,
por receio de ser apontada e acusada. FOI VOCÊ! Talvez porque não desse a mínima.
As crianças sendo poupadas da visão para evitar os pesadelos noturnos, ou para guardar
uma última imagem agradável, alguns adultos se poupavam de ver pelos mesmos motivos.

Seguimos então para o enterro, a fila de carros era maior do que eu esperava, andei de
ônibus a minha vida inteira, ali tinham carros para um mês todo, sem repetir nenhum,
eu ainda ao meu lado, a caixa agora estava selada, com duas bandeiras cobrindo-me,
uma do meu estado, outra do meu time do coração, como um cobertor a me agasalhar.
A terra do cemitério com seu barulho peculiar ao arrastar dos sapatos, engraçado como
o cheiro de cemitério não se compara a nenhum outro, mesmo se não houvesse cruz,
nem covas, ainda assim saberíamos que estávamos num cemitério só pelo cheiro e silêncio,
o vento do cemitério não é o mesmo vento dos bosques, das hortas, das praias, é um
vento penoso.

Ouvia-se orações baixinhas, como jogador cantando o hino nacional numa partida de futebol, só se via a oração pelos lábios mexendo de longe. Choro, ainda choro.
Sempre quis uma musica nesse último momento, vi a chegada de um violão, muitos se
abraçavam, outros de costas, não queriam ver, outros ajoelhados, outros cochichavam.
O primeiro acorde deu vida a musica, logo alguns deram mais ênfase ao choro por se tratar da musica que eu mais me identificava e que as pessoas me identificava também na musica, eu já aquecendo a voz para cantar na frente daquela plateia toda, como costumava fazer, mas ninguém poderia me ouvir, lembrei.

Mesmo assim cantei:

Ando tão à flor da pele
Qualquer beijo de novela me faz chorar
Ando tão à flor da pele que teu olhar flor na janela me faz morrer
Ando tão à flor da pele que meu desejo se confunde com a vontade de não ser
Ando tão à flor da pele que a minha pele tem o fogo do juízo final

Alguns cantavam baixinho como a oração, outros cantavam alto, desafinados como um
desabafo, com raiva, perguntando por quê? Por quê agora, tão cedo? Alguns batiam palmas
ritmando a canção, o canto para minha morte. Avistava até alguns inimigos, mais afastados talvez com medo de serem delatados inimigos, VOCÊ NÃO GOSTAVA DELE! Foi quando vi que até os inimigos me respeitavam, vieram prestar a homenagem, inimigos também se respeitam. As vezes até mais que os amigos.

Um barco sem porto, sem rumo, sem vela
Cavalo sem sela
Bicho solto, cão sem dono, menino bandido
As vezes me preserva noutras... Suicídio.

A maioria das pessoas não cantaram a ultima palavra, medo? Havia a possibilidade,
ninguém queria acreditar ou aceitar, mas havia.

Fim da canção, último acorde tocado com um cuidado exagerado, uma lentidão exagerada
como um "Continua", como um "aguarde cenas do próximo capítulo". Curioso que eu
chorão do jeito que sou não tinha derrubado sequer uma lágrima, seria eu incapaz de chorar
por mim mesmo? Seria egoísmo? Logo eu que chorava até em episódio do Chaves, não
choraria em meu próprio enterro? E eu ali do meu lado, só não de mãos dadas pela
impossibilidade que a caixa de madeira teimava em me impor. Vi que acima das bandeiras
colocadas com cuidado em cima da caixa havia algumas fotos minhas com algumas
pessoas que estavam ali presentes, mas uma ou duas delas tinha a presença da tal visita
que nunca chegara, foi quando derramei a primeira lágrima, agora era tarde!
Eu seria enterrado, jogariam terra em mim, e só teria a companhia dos vermes, minhocas,
e outros habitantes insetos a me beijar. Agora era tarde demais, 45 minutos do segundo
tempo, sem acréscimos, final de campeonato, e eu com certeza não era o vencedor, não levantaria o troféu. E a visita não chegaria. O choro, a coroa de flores, as bandeiras, a canção, trocaria tudo por uma última visão, uma última imagem, queria ver se haveria lágrimas em seus olhos, não foi possível, me enterraram. A luz do sol já não era visível, mesmo o fato de eu não ser enterrado junto com meu corpo, ainda assim me faltava luz. Sempre gostei da noite, mas isso era um exagero, gosto também do sol, mas ele nunca mais foi o mesmo, morto igual ao meu corpo.

Algum tempo depois...
Digamos que renasci, não sou Jesus calma. Aquele meu antigo corpo está e sempre
estará enterrado. Ganhei um novo, totalmente diferente, com defeitos novos, os antigos
deixei para trás, não quero morrer de novo, apesar de saber que será inevitável vou tentar
evitar com unhas e dentes.
Renasci uma pessoa diferente, o mesmo rosto, os mesmos documentos, mesmos
familiares, alguns amigos novos, alguns antigos amigos se foram com minha morte, foi
muito para eles, inimigos que se tornaram amigos e vice-versa. Sem esse clichê de que
agora estou mais forte, sou tão mortal como era antes de morrer, sou apenas diferente.
E aquela visita que eu tanto esperava, nem agora depois de vivo tive, porém acho que
é melhor mesmo, afinal, pode ser que ela me leve à morrer de novo.
Percebi uma coisa também, depois de me ver enterrado, todas as pessoas foram embora,
continuaram com suas vidas, algumas lembrando de tempos em tempos, outras só na
data de minha morte ou na data do meu nascimento, outras nem lembravam mais.
Mas percebi que continuaram com suas vidas, justo!
Mas fiquei ali pensando... e tive muito tempo para isso.
Percebi que o único a estar ali, perto, ao lado, de mãos dadas o tempo todo
era eu. Como sempre foi.

Bento.
 
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Um comentário:

Anônimo disse...

eu estaria lá...seria aquela pessoa que vai toda de preto, óculos escuros, como se estivesse disfarçada...e ficaria olhando sozinha...de longe...cheia de lágrimas nos olhos e saudades no coração.