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Parei de andar, que no
meu caso é semicorrer. Enfiei os dedos no bolso e com o indicador e o médio
quase como uma pinça consegui retirar o molho de chaves para abrir o portão.
Todos os dias o mesmo
horário, o mesmo caminho e geralmente os mesmos pensamentos habitando a cabeça.
Só que hoje não tinham cachorros para me recepcionar, até meus cachorros
descobriram compromissos em suas rotinas e eu continuava com os mesmos
problemas, o mesmo caminho e horários.
Passei pela garagem
rapidamente porque eu tinha pressa. Logo ela chegaria e do portão gritaria meu
nome, alto, seco, só a primeira silaba, já era o bastante, mesmo que não dissesse
nada, mesmo que falasse em hebraico, japonês, mandarim. Mesmo que resmungasse
já era o bastante para eu reconhecer a entonação de sua voz.
Tinha pressa para me
aprontar, louças, roupa de cama, banho, tudo. Abri a gaveta da cômoda e deixei
a garrafa de conhaque repousando sobre as camisetas velhas, queria esconder que
ainda precisava do líquido amargo para acordar, dormir, comer, andar, pensar
com equilíbrio e para parar de pensar às vezes.
Sumiram também os
gatos e eu passei a vista rápida ao telhado sem encontrar nenhum deles. Sem
gatos, sem cachorros, sem vizinhos gritando, sem carros na rua e sem telefone
tocando. Comecei achar que era meu dia de sorte e logo pensei em servir uma
dose para comemorar, mas aí lembrei que ela estava vindo e tentei imaginar com
que roupa ela estaria, de que forma teria preso o cabelo, ou se estaria solto. Tênis,
sapato, sapatilha, chinelo? Não importava, não havia roupa alguma que a
deixasse feia, era incrível.
Tão incrível que no
começo ela acabava com minha autoestima, perto dela eu sempre parecia do
avesso, desarrumado, tímido, burro e incapaz. E eu não dava a mínima. Estar ao
seu lado me bastava e era tudo lindo. Agora não, agora ao seu lado eu me sinto
esbelto, esperto, de uma soberba incomparável. Sinto-me o herói alado guardando
a mocinha indefesa. Não que ela seja indefesa, bem longe disso, mas ela acha
que eu não sei que ela finge precisar de mim só para que eu me sinta o homem
dela e ela se sinta a minha mulher. Menos hoje.
Hoje ela reservou para
ser minha heroína, com direito a capa, identidade secreta e tudo mais.
Ela quis assim e eu
fiquei pensando se eu já fiz por merecer tais cuidados, se sou bom o bastante,
se posso melhorar em alguma coisa, essas coisas de insegurança que toma conta
do peito de vez em quando.
Encostei na cama
esperando que ela chegasse e peguei no sono, quando acordei ela já estava ao
meu lado vigiando meu sono, ao abrir os olhos ela recepcionou-os com um sorriso
lindo, sorriso dela.
E ela disse que hoje
era meu dia, disse para que eu não pensasse em nada e eu não pensei. Para que
eu não me preocupasse que ela resolveria todos os problemas e eu não me
preocupei.
Não me deixou sequer
levantar, pois suas pernas seriam as minhas e que se eu quisesse algo logo ela
traria.
Tentei dizer o quanto
estava feliz pela visita mas fui interrompido por seus lábios rosados tocando
os meus. Ela não queria que eu falasse e eu não falei
E para mim não poderia
haver momento mais perfeito, puxando pela memória descobri que não havia mesmo,
em toda minha vida.
Foi quando comecei
ouvir latidos do lado de fora, eram os cachorros que tinham voltado. Ouvi os
miados, eram os gatos que estavam no telhado outra vez.
O telefone tocou, era
o silêncio indo embora de novo.
Os vizinhos brigando,
era a realidade voltando ao normal.
Mas nada importava,
pois ela estava ao meu lado, então me sentei, passei os olhos ao redor e não
encontrei vestígios dela. Tudo ali estava exatamente como deixei antes de pegar
no sono e me dei conta que ela nunca estivera lá.
Claro que não, ela se
fora há muito tempo. Era a solidão pedindo passagem.
Então abri a gaveta e
fui beijado pelo conhaque várias vezes, era a vontade de esquecer novamente.
Bento.
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2 comentários:
Não tenho nem o que falar, você escreve super bem. Adoro ler suas cronicas. Parabéns Bento.
Simplesmente perfeito *.*
Amei mesmo :)
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