A agulha bate na minha
pele e me faz lembrar: estou vivo. A dor, o incômodo da pele sendo picada
várias e várias vezes, o sangue jorra pelos cortes. Isso é real, vivo. A dor. A
dor. Respire, pense em outra coisa. Então eu saio da realidade por alguns instantes
e vejo uma garota, minha garota. Com os cabelos dourados ela me olha como se
estivesse esperado o dia todo por aquele momento. Como se tivesse contando os
minutos e segundos por aquele abraço e o beijo intenso. Espera que eu coloque
meus dedos entre seus cabelos da nunca e simule uma força, nada demais, mas o
suficiente para demonstrar que eu também contava os minutos e os segundos para
finalmente chegar aquele momento.
Ela olha em meus olhos
e vê o mesmo olhar de sempre. Olhar de garoto que ganhou um presente, olhar de
garoto que chegou num parque de diversões com algodão doce, palhaços,
princesas, balões e tudo mais. Ela olha meus olhos e vê que toda vez que eles a
miram é como se fosse a primeira vez. Como uma grande novidade, brilha como
fogos de artifício, uma comemoração de meus instintos, de meus sentidos e todos
estão em festa.
Volto à realidade
quando a agulha bate firme num osso ou num nervo. Uma tempestade de dor, prazer
e orgulho. Mais sangue. Mais dor. Dor que dura horas para um bem maior que será
eterno enquanto eu viver. Visto-me com meus excessos e ideologias e ninguém
pode me tirar isso. Mesmo que arranquem minha pele. Tento sair dali, é muita
dor e quero voltar ao delicioso momento que desabotoou a blusa, me vejo em seus
olhos e o hálito de minha garota invade minhas narinas como se dissesse: estou
aqui e agora pertenço a você e suas vontades. Não confunda com submissão, é
prazer, é carne. Apesar da falta de agulhas e tintas as situações não são tão
diferentes. Não tem submissão, tem cumplicidade. É como um beijo com mais
ardor, com mais intimidade. Um beijo de corpo inteiro. Chamem de sexo, de amor,
não importa. É delícia.
Os olhos não desviam
um do outro pois os sentidos estão todos atentos ao show sinfônico dos gemidos
que entram pelos tímpanos e nos faz querer mais. É neste momento, neste único
momento que os ouvidos e os pés e os joelhos e a coluna e o membro se unem num
grande e único órgão. A medicina não pode explicar isso. As unhas rasgando a
pele das costas podem. As coxas apertando a pélvis podem. Cientistas não. Isso
é a natureza.
Mais alguns cortes na
pele que me traz de volta ao trabalho artístico na tela da alma. Paramos com o
trabalho para espreguiçar o corpo imóvel e trazer o sangue circulando novamente
em minhas veias. Um cigarro para aproveitar a pausa. Recebo um elogio do
artista pela força de vontade e por ser tão destemido diante da dor. Respondo
que dor, neste corpo, não é novidade. É possível se adaptar a qualquer coisa,
mesmo à dor. Ninguém quer sofrer, porém você se acostuma. Como o engolidor de
espadas, o homem que deita-se na cama de prego. A vida é uma imensa cama de
prego e brasas acesas que temos que aprender a deitar.
Volto à maca e ao
trabalho árduo da agulha rasgando, riscando, pintando. Acompanho o trabalho e
aprovo. Tanta dor irá valer a pena. Muita dor me leva ao devaneio. É minha
forma de lutar contra ela. O que não é muito diferente de escrever. Escrevo
expondo meus órgãos, minha intimidade para fugir da dor.
No devaneio abro o
botão do jeans. Me apego a lingerie, pronto. Essa também já nos deixou. Agora é
cheiro de libido, odor de vontade. A pele é branca como a neve, toda ela, toda
a garota veste a neve como uma seda e vice-versa. Ali, quando é o único momento
que desvio o olhar de seus olhos. Estou ali de corpo e alma. Não me encoste,
pois pode levar um choque, tamanho a concentração e querer. Lábios com lábios e
vontade e corpos nus e tesão. Pés que viram mãos e afagam no intuito de não
deixar nenhum pedaço de pele sem afeto. Nenhum poro sem carinho. Ali somos um,
nada mais que um. Mas somos um numa cumplicidade ímpar e infinita. "Me
possua" "Eu já a tenho, estou dentro de você" como a alma. Minh’alma. Marcados, como tatuagem.
Bento.
-
Nenhum comentário:
Postar um comentário