Eu voltava do
trabalho numa sexta-feira, o dia internacional do pecado, para mim e para o
mundo - exceto os religiosos, estes pecam todos os dias. Eu digo voltava porque
meu destino era minha casa. Não tinha um puto no bolso. Se for estranho para
você ler que eu trabalhei o mês inteiro e estava voltando para casa por estar
sem dinheiro, digo que você é uma pessoa feliz, pois a maioria das pessoas
conhece o gosto amargo desta frase. O problema de voltar para casa na
sexta-feira é que você não fica feliz de encontrar o metrô e o ônibus vazio,
pois sabe que todas as outras pessoas estão em bares e puteiros e postos de
gasolina, todos com suas cervejas geladas, soltando suas risadas com outras
pessoas felizes das quais conseguiram fazer com que seus salários durassem o
mês inteiro. Por isso digo que o caminho de volta para casa na sexta-feira tem
sabor amargo. O excesso de sangue em sua corrente sanguínea e nada de álcool
nas veias tem um sabor amargo. Mas tudo isso ainda pode ficar pior.
Eu tenho um
problema com belas garotas. Tenho o problema de querer pra mim qualquer mulher
que ultrapasse os limites possíveis de beleza. E ainda existe o fato de que
alguns graus de beleza vêm embutidos com uma crueldade ferrenha de trazer-nos
para a realidade de que não temos, e ainda potencializado pelo problema de
voltar para casa no dia especialmente dedicado a beber e ficar bêbado, muito
bêbado. Toda merda feita em consequência do álcool numa sexta deveria ser
perdoada. Isso deveria ser lei. O 11° mandamento. As pessoas amam mais na
sexta-feira, até. Caso Deus fosse um cara justo ele teria feito duas sextas na
mesma semana. Porém, deixo de lamentar-me as injustiças divinas sobre o
calendário para falar da tal garota que encontrei no metrô, afinal. Eu já disse
aqui que sou um apaixonado por cabelos e mais cabelos negros e longos, no
entanto, tenho uma coisa quase edipiana com cabelos loiros e olhos azuis. E
digo mais: que se fodam todos os nacionalistas agora. Ela era um belo exemplar
de europeia dos países baixos. Difícil até para mim, dramático que sou,
traduzir em palavras o motivo da minha camisa ensopada de baba que eu derramava
por causa de seu rosto. Tratava-se de um encaixe perfeito de queixo e nariz e
olhos e testa e lábios e eu já estava apaixonado antes mesmo de pensar em
escrever estas linhas. Quando eu era mais jovem e ainda tinha um bom
relacionamento com Deus eu agradecia a Ele por ter minha visão perfeita e poder
apreciar tais perfeições colocadas em nosso mundo para lembrarmos-nos de nossos
defeitos e limites. Hoje não agradeço mais. Ainda tentando fazer com que vocês
imaginem algo pelo menos próximo ao que eu havia presenciado, eu tenho um
conhecido que diz que esse tipo de garota é para comer num papai-mamãe básico
no intuito de não perder aquele rosto de vista. Tinha um outro que dizia que
certas garotas são bonitas até cagando. Essa era um tipo deste.
Mas eu tenho
outros vícios além de garotas tão lindas quanto nossas mentes possam imaginar,
o álcool e a escrita. Eu sou um reparador
irremediável. Você, seu bosta, que está apontando para a tela do computador com
seu risinho estúpido desfazendo do autor e dizendo a si mesmo não existir a tal
palavra "reparador" no intuito de reparar quero mais é que você morra
com uma lança enfiada no cu, pois eu invento o que eu quiser. Então voltamos ao
ato de reparar e analisar sobre roupas, dedos dos pés, manchas amarelas nas
camisas abaixo das áxilas e por aí vai. Combinações de cores sempre mexem com
minha libido por achar que é necessário um extremo bom senso para o êxito nas
combinações e lhe digo, engolindo com gosto todas as injúrias que disse em
todos esses anos sobre a vestimenta alheia. Digo, pois esta garota estava vestida
com uma das piores combinações de todos os tempos e eu me omiti. Não disse uma
palavra sequer. Sapatos vermelhos, calças listradas de branco e preto, blusa
verde, cachecol roxo e bolsa laranja e eu não fiz uma critica nem mentalmente.
Reparei e guardei pra mim no mais profundo âmago. Traí meus conceitos sem mesmo
me lamentar, simplesmente pelo motivo de que algumas garotas têm rostos tão
perfeitos que nada mais importa. Só fui lembrar-me da sexta-feira deprimente
quando ela desceu na estação Paraíso e eu lembrei que talvez eu pudesse estar
bebendo com paisagem, na Rua Augusta e me embebedar com a beleza das garotas de
lá.
A sexta-feira
passou sem maiores problemas e o final de semana também, bem como toda a semana
seguinte de trabalho porque as coisas simplesmente passam. A maior parte da sua
vida passa e é só isso que acontece. Nada de outro mundo, nenhum incrível fato
que mereça comentário. Para quem lê, a sensação deve ser de que a vida de quem
escreve é sempre ativa e singular mas a vida é uma merda para todo mundo. A
vida não passa de uma grande esteira lotada de merda que vai passando e
passando e o pedaço que tem menos merda você acaba por pensar que está
melhorando. Então nós que escrevemos cortamos os momentos em que a esteira está
cheia e só falamos, pelo menos na maioria das vezes, das partes com pouca
merda.
Era uma
quinta-feira, eu acho. O frio tinha ido embora e estava um clima agradável e eu
estava voltando para casa com um livro de Bukowski aberto. Como ainda era
quinta-feira não havia lugar para sentar e eu lia em pé. Até que começou a
entrar mais e mais gente conforme as estações do metrô iam passando. Parando e
pegando pessoas. Todos voltando ou indo para algum lugar. Do trabalho, da casa
do namorado ou namorada. Velhos voltando do médico, crianças voltando da
escola. Velhos voltando do médico com suas crianças. Tarados passeando de metrô
a fim de esfregar algumas bundas e por aí vai. Eu estava em pé lendo alguns
contos de Bukowski, voltando do trabalho numa quinta-feira e reparei ao erguer
os olhos que na última estação haviam entrado duas garotas no vagão,
desconhecidas uma da outra e além de seus rostos lindos como um gato brincando
com uma folha seca, elas eram simplesmente incomuns. Uma era ruiva e a outra
loira. Ruiva e loira de verdade. Com sardas e tudo. Vocês sabem como é raro
encontrar ruivas e loiras de verdade hoje em dia? Ainda mais no mesmo vagão e
horário. Então eu poderia interpretar aquilo do jeito que eu escolhesse e
decide interpretar como um sinal positivo. O Destino por alguma razão estava de
bom humor e queria que eu soubesse disso. Nunca escondi que o Destino e eu
somos arqui-inimigos, mas mesmo nós damos uma trégua de vez em quando.
Então
voltando para a sexta-feira maldita da qual eu não tinha dinheiro e nem lugar
para ir. Acabei indo para casa. Abri o livro de Bukowski, abri a garrafa de
whisky, pois mesmo sem dinheiro o álcool nunca falta. Sempre há uma garrafa de
qualquer coisa no frigobar ou na cômoda para saciar minha sede e minha loucura.
Abri o saco de fumo, adicionei ao cachimbo, estava pronto. Só faltava a trilha
sonora. Fiz uma seleção das músicas de Albert King, Muddy Waters e mais algumas
coisas parecidas. Eu lia e fumava e bebia e a sexta-feira dos infernos demorava
a acabar. Só parei de ler quando a inspiração deu o ar da graça, deixei o livro
de lado e servi mais uma dose enquanto digitava frases e mais frases sobre
qualquer coisa. O Destino realmente tinha dado uma trégua. Fiz um brinde em sua
homenagem, então.
Bento.
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