Então eu estava muito nervoso. Era noite. Daqueles dias
cansativos que você demora mais pra voltar pra casa que o período todo de
trabalho. E o relógio te informa que em algumas horas você já precisará estar
de pé e acordado novamente para ir trabalhar. Só que você não quer dormir. Você
quer aproveitar a noite. Olha pela janela e vê a lua que te convida a beber e
se divertir. Mas isso é só para quem tem direito. Nós trabalhadores não
podemos. Nós, telefonistas, pedreiros, balconistas, eletricistas, encanadores,
professores, vendedores, motoristas, lavadores de carros, limpadores de
vidraças, atendentes, expositores, estoquistas, dentre todas as outras coisas,
nós não temos este direito. Nós apenas dormimos e acordamos e trabalhamos, pois
o mundo precisa de nós. O mercado e a economia precisam de nós. Inclusive aqueles
que têm o direito de beber numa noite dessas, no meio da semana, eles também
precisam de nós. E eu estava lá, em frente ao espelho, vendo meus olhos
cansados de acordar quase sem dormir, querendo sair e me divertir sem poder.
Mas confesso que antes de chegar em casa passei no boteco e pedi duas doses. Da
forte. Por este motivo, talvez, eu quisesse trocar a janta pelo gargalo de uma
boa cerveja gelada. Eu disse uma?
Um calor de sentir-se sujo. Duas doses no estômago depois de
um dia cansativo e já me sinto poderoso. Quase como quando ouço The Doors no
último volume. Olho no espelho e sou só sobrancelhas e bigode e barba. O cabelo
já passa da hora de cortar e sinto calor. Lembro-me que escondido na cômoda,
para as horas de emergência, tenho um meio litro de rum pela metade. Já ajuda
em alguma coisa. Para fazer durar mais adiciono em cada dose dois dedos d'água.
De meio faço quase um inteiro. É o milagre da multiplicação. "Sou o Jesus
Cristo do rum", eu grito sem me importar com os vizinhos. Um pirata com a barba ruiva tomando rum como quem bebe água. Mais uma dose e
agora fico nu para suportar o calor, mas ainda não é suficiente. Meu rosto não
faz questão de esconder as marcas do tempo e dos incontáveis porres. Das noites
sem dormir. Dos desamores. Há muito que contar em cada ruga, cada cravo, cada
pelo de barba. E a barba? Enorme, com pelos eriçados, rebeldes, precisando
aparar, mas que tempo tenho? Quando minhas horas de descanso reservam-se para
dormir e beber e escrever. Algo me incomoda e a barba pode ser quem vai pagar o
pato. Então entre o cigarro aceso e mais uma dose de rum eu acho a tesoura e
começo a cortar a barba. A cada chumaço de barba largada no lavatório é um
pouco de sofrimento que vai pelo ralo. Leva tempo para manter uma barba deste
tamanho. Porém, não mais tempo que economizei quando optei por não perder tempo
fazendo a barba.
A verdade é que de lua, como sou, por vezes preciso de uma
grande mudança em minha rotina para sentir-me vivo. Vivo e ativo. Vivo e útil.
E ainda tem a garota do Bourbon que permanece preenchendo meus finais de
semana. Uma linda esta garota. De uma paciência ímpar. Também pudera, para me
aturar, somente tendo uma paciência de monge tibetano, mas ao invés disso, ela
é descendente de nordestinos mesmo, talvez seja isso. Além de paciente ela é
quase tão preguiçosa quanto eu, logo, não se importa de ficar deitada tomando
cerveja, falando sobre qualquer coisa e transando.
Não existe muito mais o que
se possa querer numa garota quando esta não reclama de seus cigarros, sua
vontade incontrolável de algo alcoólico e seu vício em sexo, dito isso, por
vezes eu abro mão de meu casulo para levá-la em lugares que queira ir, afinal,
quando se está com uma garota como ela é preciso abrir mão de algumas coisas
para mantê-la por perto. É uma via de duas mãos. Não se pode viver sem abrir
mão de coisas. Abri-se mão da cerveja importada de trigo para poder investir em
quantidade de cervejas nacionais e assim poder comprar garrafas que vão te
deixar suficientemente bêbado. Abre-se mão, por vezes, da garrafa de Bourbon
importado para poder tomar um bom café da manhã a cada três dias de ressacas
consecutivas. Abre-se mão de comer em restaurantes boca-de-porco, que servem
comida como quem serve para um batalhão, com quase um porco inteiro frito em
seu prato clamando para ser saboreado com as mãos para poder impressionar uma
garota num restaurante que serve comida como se fosse alpiste, com pratos
decorados como aquela tia perua. Vivemos abrindo mão de coisas esperando
conseguir outras, porque ainda somos daqueles que têm que escolher entre dormir
ou aceitar o convite da lua que nos chama para beber e ficar bêbado e vomitar
metade do que bebemos para poder beber mais e não lembrar do que fizemos na
noite passada. Nós ainda somos os telefonistas, pedreiros, balconistas,
eletricistas, encanadores, professores, vendedores, motoristas, lavadores de
carros, limpadores de vidraças, atendentes, expositores, estoquistas,
faxineiros, porteiros, zeladores, carteiros, ajudantes, auxiliares... E
continuaremos até que a morte nos convide para dançar.
Bento.
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