terça-feira, 24 de outubro de 2023

LUTO? OU NÃO LUTO?

 

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Uma vez minha esposa me disse: — você nunca perdeu alguém próximo, então não sabe como é. Naquele momento eu fiquei ofendidíssimo. “Como assim ela está dizendo que eu não sei como é sentir”? Que absurdo. No alto dos meus 30 anos na época, escritor, marginal, sofredor de carteirinha e vem essa “zinha” me dizer que eu não sei sofrer? Pensei.

Não me entendam mal, ok?! Amo minha esposa e estamos casados há 8 anos. Pedagoga, artista, mulher incrível que nasceu num ambiente de pobreza, machismo, crime até, e se tornou uma mulher em seu melhor e maior sentido da palavra. Dito isso, com sua inteligência eu duvido que ela não tenha ouvido o ranger dos meus dentes ao presenciar aquela sentença. “você nunca sofreu um luto”.

Após 15 segundos de azia, tentando segurar a ânsia de despejar toda minha raiva pela boca eu refleti e ela tinha um ponto. Eu sou filho sem pai e ela, óbvio, sabe disso. Sequer o nome no RG eu tenho e dei muitas explicações sobre isso durante a vida. Minha mãe está conosco até hoje e entre altos e baixos, ela é minha mãe. Incrível, insuportável, mas minha mãe.

Nunca conheci um avô sequer. Nem por parte de mãe e muito menos por parte de pai pelos motivos citados acima. Perdi tios, mas com todo o respeito, nem se compara.

Silêncio. Meu. E dela.

Ela passa a ponderar e eu peço que espere.

Estava ruminando a informação.

 

Logo eu. Escritor de contos e crônicas. Que abusa da morte e da perda em minhas histórias. Como que eu, não sabia nada daquilo?

 

O que é o luto? Pensei após algum tempo em silêncio. Como todo autor do meu tempo, fui pesquisar. Descobri que o luto que representamos na cor preta aqui nas Américas, são representados pela cor branca na China. Sem piadas com roqueiros por lá.

Já no Japão eles escolhem a cor azul. Mas, independente disso, luto é o sentimento universal de tristeza profunda ao perder alguém.

Perder.

Questão de perspectiva.

Perder.

Eu sei sobre perder.

Rompi o silêncio e perguntei.

 

— Quando você diz perder, necessária precisa ser para a morte?

 

E agora ela estava em silêncio.

 

Pensei em minha esposa. Pensei em todas as manhãs acordando juntos. Em passar o café não como eu gosto, nem como ela gosta, mas sim no meio termo. Nas séries que combinamos de ver juntos e eu não ouso dar play sem sua companhia.

No sofá que ela dorme e eu às vezes durmo, pois até nossa presença precisa de folga por vezes. Penso nas meias, no sabonete e as bolachas Bauducco que dividimos. A pizza que religiosamente pedimos há 200 anos do mesmo sabor. O toque atrás das orelhas, escovas de dentes, seu cabelo no ralo do banheiro.

Seu riso em minhas piadas sem graça. A cocega em seus pés que ela odeia. Seus traumas e os meus. Sua ojeriza por pimenta. Sua bad devido a traumas passados e isso é só um resumo. E me pego pensando sem tudo isso.

Penso na ausência de tudo isso e sinto luto.

Luto pela perda.

Sentimento profundo de tristeza pela perda de alguém. Não necessariamente para a morte, porém perder para mim mesmo.

Por mim mesmo.

Por minha causa e somente minha.

Perder por incompetência e eu tenho tantas. Tantas amarguras, desgosto, todas as palavras do dicionário me trazem a segurança que luto é mais que a morte de alguém.

É a perda.

 

Bento.