Quando você acorda com
o crepúsculo depois de ter quase acabado com o estoque de destilados do bar, na
verdade, você não acorda. Seu corpo permanece no transe clínico da maledicência.
É uma máquina que antes da sua noite autodestrutiva, perfeição de engenharia
fomentada pelo Criador, hoje, com a maior ressaca do mundo, não passa de uma
lata velha com motor a lenha. Nada funciona direito.
A cabeça não funciona,
o reflexo apresenta defeitos. Após passar alguns minutos na privada você
percebe que o intestino, rins e grande parte dos órgãos também estão
temporariamente fora do ar. Então, sai do banheiro ciente de que a morte está
próxima, o cheiro já é de defunto putrefato. Não se engane, somos todos um
amontoado de carne que está em constante processo de putrefação.
Eu ainda estou na
noite anterior e, o que é pior, a noite passada ainda está em mim. Só o que eu
fiz foi dar uma pausa, uma cochilada de uma ou duas horas. A cabeça lateja e me
avisa; mais algumas noites como esta e os danos serão irreversíveis. Grande
merda. Como se eu já não estivesse num caminho sem volta.
Quando se está num
caminho sem volta, o que te resta é continuar seguindo em frente. Há mais inconsciência
que verdade nisso tudo. Seguimos andando, então.
Bem, após o banho já
estava atrasado e o café me dava ânsia de vômito, mesmo assim continuei
bebendo. Curioso é que minhas ânsias nunca se concluem. Acho que meu corpo
gosta tanto de álcool que não quer desperdiçar nem uma gota. É o pecado do
desperdício. Como um fígado ciente de seu compromisso de sustentabilidade.
Talvez não faça sentido, mas essa palavra está tão na moda que quis usá-la para
alguma coisa.
Já estou atrasado para
o trabalho e ao apertar o tubo da pasta de dente errei três vezes a escova.
Esses reflexos...
Minhas mãos tremem há
anos. O porquê eu só suspeito, mas não vem ao caso.
Enfim, acertei as cerdas
com a pasta na tentativa inútil de tirar o gosto de whisky amanhecido da boca.
Nunca soube com o que se parece tal gosto, meia velha e suja talvez.
Olho-me no espelho e o
álcool só mantém jovem as cobras e fetos no pote, pois eu estou mais velho do
que nunca.
Olhei no espelho e não
vi meu reflexo. Calma, não estou dizendo que virei nenhum vampiro, apesar da
palidez e do gosto de sangue na boca por ter rasgado a gengiva com a escova de
dentes, eu adoro alho. O que eu quero dizer é que o cara que eu vi ali, me
olhando, nem de longe se parecia comigo.
Não sei quanto tempo
se passou, mas ficamos um bom tempo nos encarando. Só fui desviar o olhar
quando senti meus dedos sendo queimados pelo aviso do fim do cigarro. Joguei a
bituca na privada e continuei a encarar aquele cara estranho. Lembrava
vagamente o meu rosto, mas não era eu. Foquei em seus olhos e tentei achar-me
naquelas esferas castanhas e lembrei que meus olhos costumavam ter um brilho
que me orgulhava. Não poderia ser eu, pensei. "Como esse cara entrou
aqui"?
Continuava encarando
aqueles olhos e reconhecia que eram meus pelo farelo. Claro! Só poderiam ser
meus, eu é que não encarava-os há uns dois ou três anos. Malditos olhos.
Eis que depois de toda
essa viagem de espelhos e olhos que provavelmente se deve ao excesso de álcool
em meu corpo e a falha de alguma parte do cérebro essencial para manter a
sanidade, passei a buscar algum motivo forte para eu não deixar o trabalho pra
lá e voltar a me deitar na cama e colocar o sono em dia. Trabalho esse um tanto
quanto difícil quando se trata de um sujeito entediado como eu.
Pensei nas contas a
pagar. No salário que viabiliza meus porres homéricos. Pensei até na garota de
olhos cerrados que me faz sorrir inconscientemente. Bastou a imagem de sua
franja caindo aos olhos e o cara no espelho me olhou sorrindo. Um sorriso
tímido é bem verdade.
A legging e esmeraldas
já não são suficientes para me fazer sorrir, muito menos para fazer-me levantar
da cama.
Eu sempre tenho os
piores pensamentos de manhã. É sempre como o apocalipse, o fim dos tempos. Tudo
é um grande balde de merda e eu estou com a cabeça afundada nela. Não importa
se de ressaca ou não, de manhã é sempre bosta por todos os lados. Pelo menos
durante a meia hora que eu demoro para despertar com minha caneca de café e
meus dois cigarros, antes do banho.
Hoje, ontem e, amanhã,
acredito eu, serão os olhos levemente cerrados que me farão colocar o primeiro
pé no chão e dizer uns três ou quatro palavrões à menos antes de me levantar.
Por hora, é só o que
eu posso prometer. Porém, quem sabe, eu não dure tudo isso.
Bento.
-
2 comentários:
Boa noite Bento!!
Não sei se esse texto é um relato de um fato real contigo, ou apenas ficção. Seja como for, foi escrito com grande liberdade de expressão, mostrando sem nenhuma trava nas palavras, o que teve vontade de escrever, como se fosse a revelação de um segredo, que já não cabia em si.
Gosto desse teu jeito de escrever, livre e solto. Depois você me conta, se a bebedeira foi real, ou ficção, ok? rsss...( curiosidade, me dá até urticária...kkkk)
Beijinhos da Lu...
Parte de tudo o que escrevo é verdade, a outra nem tanto. A parte que nem tanto deixo para você imaginar...
Grande beijo Lu!!!!
Postar um comentário