segunda-feira, 26 de maio de 2014

O QUE É UM AUTOR SEM UMA BOA MUSA? (ETERNA NOITE DE SÁBADO)

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Eis que finalmente, depois de tanto tempo me prostrei diante do teclado, numa preguiça de urso, e parei para escrever. Tamanha preguiça que trouxe comigo a garrafa do bar e deixei ao meu lado, tudo ao alcance das mãos: whisky, copo e cigarros. Devem estar se perguntando: mas e o isqueiro? Claro que esqueci o isqueiro e tive que levantar-me para pegá-lo. Isqueiro, quando não esqueço eu perco e demoro até acha-lo, por isso eu tenho muitos. Deixo-os espalhados pelo quarto para dar corda a minha preguiça, assim como faço com cinzeiros, tenho bem uma meia dúzia deles em pontos estratégicos para que nunca falte num momento de necessidade. Raramente os limpo, se querem saber. Não limpo por preguiça, mas também pelo sentimentalismo. Sempre fui sentimental a ponto de guardar a mistura ao lado do prato para comer por último. O melhor para o final. Tão sentimental que, quando criança, tomava Yakult pelo fundo do pote que era para durar mais. Mantinha o lacre intacto, mordia o fundo, um minúsculo furo no fundo e o minimalista Yakult durava vários minutos até acabar. Lembro uma vez que bebi metade do pote e guardei metade para mais tarde. Logo, sinto sempre que esvazio um cinzeiro. Cada bituca é uma lembrança. Tenho um cinzeiro em casa que guarda bitucas de anos atrás. Um cinzeiro especial, dado por uma pessoa que não me dará nada mais que ausência, então, tão sentimental que sou, guardo.

Mas queria dizer que depois de tanto tempo parei para escrever. Ufa. Fazia tempo que não desligava a TV, preparava um drink e escrevia. Não escrevia e não era só por falta de tempo, também era falta de tempo, cansaço, mas também porque não conseguia escrever. Curioso é que até pouco tempo atrás eu estava me passando a perna, me enganando, dizendo a mim mesmo que estava tudo como sempre esteve, até começarem a me dizer que eu estava repetitivo. Até aí tudo bem, todos temos nossas fixações e obsessões. Mas foi quando me chamaram de "sereno" que eu me dei conta: estava perdendo o jeito. Por isso tive que desmarcar compromissos, fechar contas em bares, negar convites para festas, sexo, shows e me trancar para escrever. Nisso escrevi dois contos e matei uma garrafa. Fora uma noite proveitosa, à de convir.

No entanto, escrever já foi mais fácil. Antigamente escrevia em qualquer lugar, qualquer paisagem. Prostrava-me em frente ao teclado e as palavras encavalavam em minha mente. Hoje em dia é menos. Passei uma semana suando sangue para terminar um texto que sequer deveria ser visto por outras pessoas, mas em época de seca qualquer mulher vira Miss, com textos não deverá ser diferente. Alguém, não me lembro quem, talvez não seja digno de nota, me disse: - Você está fraco de musa. E ainda completou - o que é um autor sem uma boa musa?
Peguei-me pensando em tal premonição. Não consigo me lembrar quem me disse isso, mas fiquei mastigando a frase: o que é um autor sem uma boa musa?
Eu tenho no álcool uma musa interminável, sem o álcool eu seria um pé no saco. Porém, ninguém pode passar a vida escrevendo sobre uma coisa só. Um bom autor tem que falar mais, sobre mais coisas, caso contrário será um chato e nós já estamos muito bem servidos de autores chatos por aí. O dia que só me restar uma coisa para falar começo escrever livros espíritas, ou autoajuda.

Continuo sem adoecer. Não pensem que estou torcendo para pegar uma gripe ou um ataque da gastrite, porém como eu disse antes é bom sentir alguma coisa para lembrar-me que estou vivo. Não adoeci mas senti algo voltando para casa, assim, sem mais nem menos. Sentado no trem, lia Bukowski e ouvia AC/DC ao mesmo tempo. Isolado lembrei que tinha marcado hora no tatuador e o salário estava na conta, tudo parecia em seu devido lugar. Ali, naquele momento, aqueles cinco ou seis segundos eu senti algo, quase que parecido com felicidade, não sei, não posso garantir, mas bem que parecia. Depois passou. Assim como veio, passou. Recebi um telefonema logo depois e era uma garota que conheci e saímos durante um tempo. Ela talvez quisesse buscar um par de brincos ou qualquer outra coisa que ela dizia ter esquecido por lá. Tudo truque, verifiquei todos os cantos de casa da outra vez que ela ligou perguntando da medalhinha que ganhara da sua mãe. Ela queria me fazer uma visita e eu não estou pronto para ela. Eu não sou páreo para ela. Eu sou excêntrico demais e ela, normal demais. No entanto eu já sei onde isso iria parar e como iria acabar. Já conheço essa história porque ela é minha história. Passamos juntos uma noite de sábado, bebendo, fumando, transando e ela me ouvindo profetizar sobre o apocalipse social e achou que na segunda-feira eu voltaria ao normal. Pensou que eu vestiria um terno azul, pentearia meu cabelo para o lado e a levaria para jantar. Pensou que eu conheceria seus pais e eles me achariam um cara decente e que eu os acharia boas pessoas. E que almoçaríamos juntos aos domingos e eu não falaria palavrão nem beberia na frente dos velhos. Ela achou que seus parentes não ligariam para minhas tatuagens pornográficas e que eu iria à igreja aos domingos. Ela pensou que eu acharia graça dos seus amigos de infância imbecis e suas piadas medíocres. Ela achou mesmo que na segunda-feira eu voltaria ao normal depois de passarmos mais uma noite de sábado bebendo, transando, fumando e profetizando sobre o apocalipse social. O que ela não sabia é que eu sou uma eterna noite de sábado, que apesar de uma vez ter sido chamado de domingo, eu sou uma eterna noite de sábado e assim como ninguém quer viver para sempre num domingo, ninguém quer uma interminável noite de sábado.



Bento.

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