Imagem de Apollonia Saintclair |
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Alarme falso.
Uma vez levantei e corri para o banheiro ainda com as
remelas grudando os olhos, com muito sacrifício sento no vaso e percebo que
eram só gases. Achei que iria cagar, mas fui ludibriado pelo peido. Já que
estava ali decido terminar o cigarro antes de levantar.
Isso às vezes acontece e não é só dos gases que falo. Há
muito alarme falso na minha vida. Um dia desses mesmo, jantei e passei mal.
Comi, deitei e foi só encostar a cabeça no travesseiro e a boca encheu d'água,
era o vômito se anunciando e sei que vão lembrar que eu digo que nunca vomito e
é verdade. Há dois dias eu não bebia e gorfei todo o almoço e janta na privada.
Bebi água e voltei correndo para ajoelhar de novo no chão do banheiro e colocar
o resto de Deus-sabe-o-que para fora. Depois de três, quatro vezes que bebi
água e voltei a vomitar decidi tomar uma dose de whisky. Batata! Alarme falso.
Pensei que iria morrer, mas era só falta de álcool. Pensei no whisky, pois já
não havia nada para por pra fora.
Poucas coisas são tão ruins quanto vomitar. Seu corpo vira
autônomo e decide que você não vai sair do banheiro enquanto ele não mandar.
Mesmo quando tentamos lutar contra, os músculos da barriga deixa claro que
somos fracos insistindo em colocar para fora tudo que ele não quer mais. De
qualquer forma, há momentos que é melhor por cima que por baixo. Hoje mesmo,
estou há alguns dias sem beber. Não tenho um centavo no bolso e enxuguei todas
as garrafas que tinha em casa. Acreditem, até o enxaguante bucal com álcool
acabou. As coisas passam a ter outro sentido quando se está sóbrio. Eu
sinceramente não entendo como as outras pessoas aguentam o mundo sem alguma
coisa para ficar doidão. Mesmo assim fui trabalhar num calor de cinco infernos
e eu com um humor de querer morder os cachorros na rua. Uma ou duas vezes tive
vontade de correr atrás do rabo só para ver se tonto, as pessoas ficariam menos
tediosas. Na empresa desligaram o ar-condicionado por causa do racionamento de
energia e eu transpirava como um macaco. Por vezes tive de ir ao banheiro lavar
o rosto e percebi minhas mãos trêmulas. Talvez eu precisasse de um médico, mas
com o dinheiro que eu NÃO tenho não podia me dar ao luxo de perder um dia de
trabalho. O espelho mostrava meu rosto cansado de quem tem uns quarenta anos e
eu ainda não cheguei nos trinta. Estranho como quando estamos alto por causa de
uma birita não reparamos nessas coisas. Os fios brancos da minha barba
brilhavam como sabres de luz de Star Wars. Bebia água como um desesperado para
repor o líquido que perco devido o calor e também por hábito de estar sempre
bebendo algo. Mastigava a água até, pois tinha fome como um mendigo. O café da
máquina era péssimo como água de um copo sujo de cinza de cigarro.
O cigarro era outro problema. Estava prestes a acabar, por
isso eu fumava metade e apagava para guardar a outra metade pra mais tarde. Não
damos o devido valor a um cigarro até perceber que é o último do maço e que não
existe outro maço. Eu poderia usar isto como metáfora para muitas coisas nessa
vida medíocre, mas até escrever é difícil quando se está sóbrio. Sempre odiei
poetas sóbrios. E vendedores sóbrios, artistas sóbrios, balconistas sóbrios,
enfim. Acho que me fiz entender.
O fato é que tudo me lembrava álcool. As pessoas exalavam
álcool. Tudo piorou quando a senhora da limpeza me deixou maluco depois de
limpar minha mesa com álcool perfumado e caprichou tanto que eu me segurei para
não acabar lambendo o móvel. A secretária, por alguns instantes ao me passar um
telefonema me deixou confuso e eu tive que pedir para que ela repetisse o
recado que aos meus ouvidos soaram como "quer que eu te leve uma cerveja
bem gelada"? quando na verdade ela perguntou se eu queria que retornasse
ao Bezerra do almoxarifado que estava atrás de falar comigo e já tinha ligado
duas vezes. Eu respondi que não podia falar no momento. Precisava de um
cigarro, de muitas cervejas e um chinelo para amenizar o calor. Pernilongos
pairavam sobre nossas cabeças e eu poderia comê-los na esperança de terem
picado algum bêbado por aí e quem sabe absorver um pouco de etanol misturado
com sangue. Talvez não fosse a primeira vez, pois já misturei álcool com tanta
coisa. Última vez que me lembro misturei xarope à vodca para curar uma tosse e
de quebra a gripe. Sempre fui bom de improviso. Uma vez estava tão falido que
tive que usar o Bom-Ar como desodorante porque não tinha nem para comprar uma
Minâncora, não via problema algum em pegar um pouco do álcool hospitalar que a
empresa comprava para a limpeza dos banheiros e alcançar uma pequena brisa
sequer.
Se eu tinha esperança que ao transpirar evaporasse um mínimo
de álcool que continha em meu fígado ou estômago entrando em minha corrente
sanguínea agora já se fora. Eu estava sóbrio e duro. Que vida ingrata. De
pensar que eu já havia dado tanto lugar para velhinhas sentarem nos ônibus e
como Deus me retribuía? Sem uma gota sequer de álcool para aturar essa vida
maldita. Sentia-me tão desambientado neste lugar como quando estive num noivado
evangélico à base de refrigerante quente e salgadinhos frios. E a maior prova
de que essas igrejas não são de Deus é eu acreditar piamente que ao adentrar
qualquer lugar sagrado eu entraria em combustão tão rápido quanto um acendedor
de churrasqueira e muito disso devido ao álcool tomando meu organismo. Mas não
agora.
Pensei em churrasco e me deu calafrios. Lembrei da cerveja no gelo e sal grosso. A carne grelhando. Infinitas batidas e caipirinhas de todas as frutas da temporada. Precisava sair dali e beber alguma coisa antes que enlouquecesse, se é que já não estou louco. Eu poderia matar o primeiro que surgir na minha frente e beber de seu sangue com um canudo se tivesse a certeza de que aquilo me tiraria dessa realidade maluca e tediosa. Já estava ouvindo vozes. Mate mate mate mate!!!!!!!!!! As veias pulsantes no pescoço fino e liso da garota que senta-se à mesa ao meu lado. Morda! Arranque um pedaço! Mastigue! Corte, esquarteje, pique, beba!! Beba!! A voz continuava. O calor e os mosquitos me irritavam. O ar, o barulho e até o silêncio me tirava do sério. Estava enlouquecendo. Os barulhos das teclas que as outras pessoas insistiam em pressionar. O click do mouse, as ventoinhas dos computadores, os ácaros nos carpetes todos malditos barulhentos. Simplesmente não conseguiam ficar em silêncio e respeitar a minha dor. Me ofendiam apenas por estarem vivos e existir. Mate mate mate mate!! Aquela voz continuava. Eu precisava sair dali, mas minhas pernas tremiam. Meu corpo tremia. Eu desejava mais que a vida um copo, umas garrafa de algo amargo, forte, rasgando a garganta ao descer. Batendo no estômago e me lembrando que estou vivo. VIVO! E que a vida podia ser melhor que esses pedaços de carne ambulante que perambulam por aí com seus sorrisos falsos, suas peles oleosas, seu fedor. Eu precisava matá-los, precisava limpar o mundo desses nojentos. Mas mais importante, eu precisava beber, então minha faxina rancorosa poderia esperar. Sentia firmeza nas pernas pela primeira vez no dia e corria. Saí dali e corri até o hall. Não tinha elevador disponível então corri pelas escadas. De dois em dois degraus tropecei duas vezes e quase parti a cabeça ao meio. Do lado de fora do prédio continuei correndo e fui como um alucinado até o bar mais perto que conhecia e estava fechado. Continuei correndo e encontrei mais bares fechados. Nem era feriado, era um dia de semana como qualquer outro. Corria e corria e mais bares com suas portas de aço abaixadas e trancadas e mercados fechados, padarias e Casas do Norte, mercearias e qualquer lugar que vendia álcool estavam fechados. Finalmente avistei um posto. Continuei correndo e a loja de conveniência estava fechada então tive uma ideia genial. A bomba! Claro. A bomba de etanol, álcool puro e da fonte. Parei ao lado do frentista sem fôlego. Não sei dizer como consegui correr tanto. Não com os trinta cigarros diários. Mas logo que parei comecei a sentir o resultado de tanto esforço. Meus pulmões colados nas costas e sem ar. Minhas pernas começaram a tremer novamente. A garganta seca quase não permitia que eu falasse. Álcool! Álcool, pedi ao frentista. Ele não entendeu e então eu repeti e tive que fazer um esforço enorme para isso. Álcool! Me dê um pouco de álcool. E daí que era álcool automotivo? E daí que aquilo poderia corroer meus órgãos e me matar? Eu já estou morto. A sociedade estava morta. Com todos os seus demônios e sua hipocrisia e suas doenças. Herpes, AIDS, gonorreia, mau hálito, caspas, furúnculos anais, hemorroidas, diabetes, gastrite e um mundaréu de enfermidades. E os gordos, os idosos, os pais de família. Eu só precisava beber. Morreria por uma gota de álcool e para melhorar o meu dia, o frentista olhou bem nos meus olhos, sem respeitar meus sentimentos e jogou a realidade toda em meus ombros novamente.
Pensei em churrasco e me deu calafrios. Lembrei da cerveja no gelo e sal grosso. A carne grelhando. Infinitas batidas e caipirinhas de todas as frutas da temporada. Precisava sair dali e beber alguma coisa antes que enlouquecesse, se é que já não estou louco. Eu poderia matar o primeiro que surgir na minha frente e beber de seu sangue com um canudo se tivesse a certeza de que aquilo me tiraria dessa realidade maluca e tediosa. Já estava ouvindo vozes. Mate mate mate mate!!!!!!!!!! As veias pulsantes no pescoço fino e liso da garota que senta-se à mesa ao meu lado. Morda! Arranque um pedaço! Mastigue! Corte, esquarteje, pique, beba!! Beba!! A voz continuava. O calor e os mosquitos me irritavam. O ar, o barulho e até o silêncio me tirava do sério. Estava enlouquecendo. Os barulhos das teclas que as outras pessoas insistiam em pressionar. O click do mouse, as ventoinhas dos computadores, os ácaros nos carpetes todos malditos barulhentos. Simplesmente não conseguiam ficar em silêncio e respeitar a minha dor. Me ofendiam apenas por estarem vivos e existir. Mate mate mate mate!! Aquela voz continuava. Eu precisava sair dali, mas minhas pernas tremiam. Meu corpo tremia. Eu desejava mais que a vida um copo, umas garrafa de algo amargo, forte, rasgando a garganta ao descer. Batendo no estômago e me lembrando que estou vivo. VIVO! E que a vida podia ser melhor que esses pedaços de carne ambulante que perambulam por aí com seus sorrisos falsos, suas peles oleosas, seu fedor. Eu precisava matá-los, precisava limpar o mundo desses nojentos. Mas mais importante, eu precisava beber, então minha faxina rancorosa poderia esperar. Sentia firmeza nas pernas pela primeira vez no dia e corria. Saí dali e corri até o hall. Não tinha elevador disponível então corri pelas escadas. De dois em dois degraus tropecei duas vezes e quase parti a cabeça ao meio. Do lado de fora do prédio continuei correndo e fui como um alucinado até o bar mais perto que conhecia e estava fechado. Continuei correndo e encontrei mais bares fechados. Nem era feriado, era um dia de semana como qualquer outro. Corria e corria e mais bares com suas portas de aço abaixadas e trancadas e mercados fechados, padarias e Casas do Norte, mercearias e qualquer lugar que vendia álcool estavam fechados. Finalmente avistei um posto. Continuei correndo e a loja de conveniência estava fechada então tive uma ideia genial. A bomba! Claro. A bomba de etanol, álcool puro e da fonte. Parei ao lado do frentista sem fôlego. Não sei dizer como consegui correr tanto. Não com os trinta cigarros diários. Mas logo que parei comecei a sentir o resultado de tanto esforço. Meus pulmões colados nas costas e sem ar. Minhas pernas começaram a tremer novamente. A garganta seca quase não permitia que eu falasse. Álcool! Álcool, pedi ao frentista. Ele não entendeu e então eu repeti e tive que fazer um esforço enorme para isso. Álcool! Me dê um pouco de álcool. E daí que era álcool automotivo? E daí que aquilo poderia corroer meus órgãos e me matar? Eu já estou morto. A sociedade estava morta. Com todos os seus demônios e sua hipocrisia e suas doenças. Herpes, AIDS, gonorreia, mau hálito, caspas, furúnculos anais, hemorroidas, diabetes, gastrite e um mundaréu de enfermidades. E os gordos, os idosos, os pais de família. Eu só precisava beber. Morreria por uma gota de álcool e para melhorar o meu dia, o frentista olhou bem nos meus olhos, sem respeitar meus sentimentos e jogou a realidade toda em meus ombros novamente.
- Não temos nenhum combustível. Estamos vazios. Ele disse.
Vazios! Claro que estão. Não só o posto. O mundo estava
vazio. As religiões, e as putas, a música, e as artes cênicas, tudo estava
vazio. De um vazio absolutamente tedioso e é por isso que eu precisava de
álcool. Então eu corri. Continuei correndo como se não houvesse amanhã e
possivelmente estava certo. Vi a avenida. Os carros indo de um lado para o
outro com seus condutores e suas vidas patéticas e vi um caminhão. Enorme e
vinha rápido. Vinha como quem estivesse atrasado para algo. Dois passos. Apenas
dois passos seria o suficiente para dar cabo daquilo. Dois passos e o caminhão
espalharia meus órgãos podres devido o consumo excessivo de álcool pela
avenida. Fazendo uma festa de sangue e pele e tripas. Dei os dois passos e
esperei. Mais espera. Em toda a minha vida não houve um segundo sequer que eu
não estivesse esperando alguma coisa. O garçom trazendo meu drink, a garota
sair do banheiro para transarmos e um monte de outras coisas. Travei os dentes
com toda a força que restava em meu corpo. Era a hora e quando estava a um
milímetro de distância, tão perto que podia sentir o calor do radiador em
minhas narinas, no último instante, fui surpreendido com o som do contrabaixo
de Lemmy tocando Aces Spades saindo do meu celular. Era o despertador me
acordando para ir trabalhar de novo.
Então, você que lê isso agora, se é que há alguém lendo
isso, deve estar respirando aliviado achando que estou contando apenas um sonho
que tive. E tudo seria maravilho se realmente fosse isso mesmo. Um sonho e
pronto. Porém, hoje completa 36 dias que não consigo sair deste sonho. Todos os
dias, sem exceção, o contrabaixo, o alarme falso do peido, o calor, os bares
fechados e o caminhão. Tudo de novo e novo e de novo. Preso num ciclo vicioso,
infinito, como um rato correndo em sua roda dentro de sua gaiola. Sempre igual.
Sempre. Igual.
Bento.
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