Imagem de Apollonia Saintclair |
É domingo e acordo com a baba represada nos fios de barba. Gostaria de dormir um pouco mais. Dormir até de tarde, quando o estômago roncasse tão alto à ponto de acordar os vizinhos. Tão tarde talvez como um personagem de Edgar Allan Poe e só acordar em meu funeral, tendo de unhar a tampa da caixa funerária na esperança de chamar a atenção dos coveiros enquanto reclamam das condições de trabalho e o salário miserável. Ou interromper a discussão da última rodada do futebol quando os nervos estarão ferrenhos em busca de provar que seu time é melhor. Bem, mas quem eu estou querendo enganar? Eu trabalho na segunda e o máximo que consigo é dormir até às dez sendo despertado pela bexiga pressionando a uretra pedindo pelo amor de Deus para ser esvaziada. Os pés gelados como uma lata de cerveja num churrasco. Os olhos ardem ao menor sinal de luz. Por isso uso o tato para achar o maço de cigarros afim de que o primeiro trago do dia ajude no despertar. Acho-o e a luz da chama do isqueiro queima os olhos. A cama está mais vazia que de costume e só por isso ainda tenho parte do lençol cobrindo meu corpo. Não ouço pássaros, nem carros na rua. Apenas o barulho da pressão da panela que provavelmente vem da casa do vizinho e automaticamente imagino o almoço de domingo com pessoas que não se suportam fingindo uma tarde familiar sadia. Escondendo seus segredos e suas angústias para evitar discussões, até que um dos parentes beba demais e fale mais que o necessário, como uma faísca numa fábrica de fogos de artifício. Eu não preciso mais passar por isso, pois minha cama está mais vazia que de costume e é só por isso que bebi sozinho até às duas, ou três da manhã – não me lembro – como se não houvesse amanhã. Então lembro que os cigarros que tenho não vão durar até segunda, que as garrafas que tenho não vão durar até segunda se continuar bebendo neste rítmo e que se não levantar agora pode ser tarde demais para a minha bexiga.
Ao caminho do banheiro, tranço as pernas e agradeço por meu quarto ser estreito à ponto de meus braços abertos alcançar as duas paredes opostas. Reparo que o quarto está mais vazio que de costume, menos roupas, menos sapatos, menos coisas e me apresso para chegar ao banheiro evitando os espelhos, esvazio todo o álcool que meu fígado lutou para filtrar a noite inteira. Com uma das mãos apoiadas na parede acho graça e agradeço secretamente por meu fígado conseguir resistir à noite melhor que eu. Grande amigo eu tenho! E dizem que o cachorro que é o melhor amigo do homem. Quem diz isso é porque nunca matou uma garrafa de Bourbon e sobreviveu para contar história.
Então enquanto vistorio e aprovo o trabalho de meu fígado reparo que o banheiro está mais vazio que de costume. Sem cremes, xampus, sabonetes íntimos, toalhas e cheiro de menstruação. Apenas um pacote de lenço umedecido esquecida acima da caixa de descarga. Enquanto isso ainda sou incomodado pelo fato de que os cigarros não durarão até segunda e lamento o fato que terei de colocar meu par de botas e ver pessoas, falar com pessoas, dar sorrisos falsos e comentar sobre o tempo. Tempo este que olho pelo vitrô do banheiro e vejo que não é dos melhores. É domingo e não há uma sombra sequer. Ainda por cima cai uma garoa tão fina quanto o fio de uma lâmina. Suponho que tão cortante quanto o fio de uma lâmina e é neste momento que me arrependo de não ter comprado mais cigarros no dia anterior. Balanço o pau e dou mais um sorriso de canto de boca pensando que esse não é dos meus maiores arrependimentos. Há piores. Muito piores.
Preciso de café e desta vez terei de fazer eu mesmo, já que minha casa está mais vazia que de costume. Penso se vale o sacrifício de fazer café ou começo o dia continuando o que estava fazendo antes de cair no sono. Por hora, opto pelo café.
Forte e amargo. Não tão diferente quanto gosto dos meus drinques, pois bebemos para esquecer dos problemas, mas não podemos esquecer do sabor da vida. Ouço gargalhadas na casa dos vizinhos e isso me faz despertar do silêncio ensurdecedor. Enquanto ferve a água vou até a vitrola para abafar a alegria da vida alheia. Se eu não te incomodo com minhas aflições, não me venha exibir seu sucesso.
Só o cheiro de café entrando em minhas narinas já me faz despertar ao ponto de voltar a notar que talvez fosse melhor um par de meias para esquentar os pés que agora parecem tão frios quanto peixes mortos no supermercado. Dói ao tentar mexer os dedos para esquenta-los e a água parece preguiçosa ao descer pelo coador de pano levando consigo o café até a garrafa. Espero pacientemente e passo a lembrar do quanto bebi ontem, do quanto bebi antes de ontem e acendo mais um cigarro para esperar e esperar e vejo que a vida não é muito mais que isso. Esperar e esperar. Esperar que a música acabe. Esperar que o ônibus passe. Que o salário caia, que as contas cheguem. Esperar que alguém te ligue, ou pela resposta daquela promoção. Esperar pela nota da prova ou sua vez na fila do banco. Esperar pela mensagem de uma garota ou esperar que as pessoas vejam algo bom em você. Esperar que a vida mude ou que as próximas eleições cheguem. Esperar a estréia de um filme ou que a sexta feira chegue. A vida é muito mais esperar que realmente desfrutar de algo. Então enquanto a água escorre no coador a torneira da cozinha pinga e a garoa lá fora continua e a vida alheia segue e eu me sinto congelado não só pelo frio, mas pelo o tempo que não passa esperando pelo café e talvez eu tenha pegado no sono de novo enquanto espero. Engano meu. Sou despertado de meu devaneio pelo carro do ovo que anuncia mais alto que Sonny Boy Willison ame sua gaita na vitrola. Então meu estômago dá sinal de vida e diz que ovos no café da manhã seriam muito bem vindos, só que eu não vou colocar meus pés gelados nessa garoa fina apenas para satiafazê-lo.
Finalmente café, amargo, contudo forte. Mais um cigarro. Agora John Lee Hooker termina uma canção e ouço mais risadas. Histórias de vida alheia e aquilo me irrita. Misturo um pouco de vodca no café para acordar mais rápido. Penso em lavar o rosto, porém se a água estiver tão gelada quanto meus pés é melhor não. O café quente com sabor de vodca desce pela garganta e arrepia os pelos dos braços. Como o Popeye e seu espinafre. Todo o corpo desperta e se aquece, menos os pés, ainda blocos de gelo. Apelo pelas meias? Ainda não.
Agora os vizinhos além da conversa e gargalhada decidiram colocar música alta com um gosto discutível. Sento-me na beirada da cama como um canceriano sem lar que sou para tomar meu café e fumar meu cigarro desejando que aquele domingo pudesse durar para sempre, porém, sem carro do ovo, sem vizinhos e com os pés quentes. Mas quem eu estou querendo enganar? Eu tenho que acordar cedo na segunda para trabalhar como faço toda semana, independente se minha cama está mais vazia que de costume ou não. Então começo a pensar que todos temos direito de descansar no domingo. Dormir até morrer, mas cientes de que temos de acordar na segunda para morrermos aos poucos em coletivos lotados esperando que o salário caia e que as contas cheguem para esperarmos nas filas dos bancos e mais uma vez sou despertado de meu devaneio por gritos e gargalhadas e barulho de panelas e pratos caindo e talheres em atrito com pratos de porcelanas e de repente me vejo com uma chave Philips do tamanho de meu antibraço presa no elástico de minha calça de moletom tocando a campainha do vizinho e ele não pode ouvir o que digo do lado de fora do portão porque sua música de merda está alta demais. Então ele vem abrir a barreira de madeira, com sua caixa de correspondência pendurada por arames e me dá bom dia com uma lata de cerveja barata na mão. Me convida para entrar. Então sou eu, meus pés gelados e a música horrorosa e eu penso que eu não queria incomodar e digo isso a ele. Eu só queria curtir minhas aflições e agonias em paz enquanto bebia minha vodca com café na esperança de dormir e morrer e ao invés disso sou obrigado a escutar aquelas canções com letras desprezíveis e de duplo sentido. Então ando pelo corredor com meu vizinho à minha frente e decido que alguém precisa pagar por atrapalhar meu domingo. Sendo assim ele é o primeiro. Com a chave Philips acerto-lhe a nuca e a chave passa pelo couro cabeludo e o osso do crânio com mais facilidade que eu imaginava. A primeira serve para ele cair de joelhos em minha frente, com o pé direito gelado calçando um chinelo piso em suas costas para puxar a chave. Nisso um jato de sangue tão quente quanto o café acerta-me o peito manchando minha camiseta branca. Mais essa ainda, talvez tenha que tomar banho, neste frio. A segunda é só por garantia e estouro seu tímpano com o espeto de aço.
Continuo no corredor e vejo minha vizinha, esposa, responsável pelo cheiro de tempero de feijão que tomava conta de minha narinas fazendo meu estômago colar nas costas. Acerto-lhe o olho esquerdo e seu corpo desfalece escorrendo pela chave como o macarrão que ela fervia escorria pelo garfo. Na mesa, mais um casal, que congelou ao ver o rosto da anfitriã coberto de sangue brilhante e escuro. Belisco a carne semi assada na forma esperando as batatas e sinto uma dorzinha no dente. A mulher clama por Deus. O homem decide se mexer e pega a faca ao lado do prato tentando se proteger mais que proteger a mulher. Sinto que a carne ainda está meio dura e mastigo com firmeza, mais dor no dente. Pego a panela com água e macarrão e arremesso em sua direção. Na mesma hora ele cai no chão se debatendo de dor. Sua pele parece descolar do osso como frango frito. A mulher levanta de supetão e reza. Me amaldiçoa. Sua mão em meu peito tenta me afastar em vão. Acerto-lhe abaixo do queixo com força e vejo a ponta da chave Philips sair na parte de cima de sua cabeça desmanchando seu penteado. Parte do couro cabeludo na ponta da chave. Seus olhos apagados me encaram. Com a mão em seu pescoço apertando-lhe contra o armário cheio de louças combinando com aquelas que estavam à mesa retiro a chave. O sangue escorre pelo seu decote. Entro na sala e desligo a música finalmente. De fundo escuto minha vitrola rolando Mustang Sally e sinto paz.
Volto para meu quarto e ao término da música finalmente sou capaz de ouvir a agulha encontrando todos os arranhões do vinil. Com a camiseta suja limpo o meio dos dedos sujos de sangue. Por fim, visto uma nova camiseta, coloco um par de meias nos pés e agora eles estão quentes como pães recém saídos do forno. Finalmente um domingo feliz. Mais uma dose de café. A vida é boa. Se souber aproveita-la.
Bento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário