terça-feira, 24 de outubro de 2023

LUTO? OU NÃO LUTO?

 

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Uma vez minha esposa me disse: — você nunca perdeu alguém próximo, então não sabe como é. Naquele momento eu fiquei ofendidíssimo. “Como assim ela está dizendo que eu não sei como é sentir”? Que absurdo. No alto dos meus 30 anos na época, escritor, marginal, sofredor de carteirinha e vem essa “zinha” me dizer que eu não sei sofrer? Pensei.

Não me entendam mal, ok?! Amo minha esposa e estamos casados há 8 anos. Pedagoga, artista, mulher incrível que nasceu num ambiente de pobreza, machismo, crime até, e se tornou uma mulher em seu melhor e maior sentido da palavra. Dito isso, com sua inteligência eu duvido que ela não tenha ouvido o ranger dos meus dentes ao presenciar aquela sentença. “você nunca sofreu um luto”.

Após 15 segundos de azia, tentando segurar a ânsia de despejar toda minha raiva pela boca eu refleti e ela tinha um ponto. Eu sou filho sem pai e ela, óbvio, sabe disso. Sequer o nome no RG eu tenho e dei muitas explicações sobre isso durante a vida. Minha mãe está conosco até hoje e entre altos e baixos, ela é minha mãe. Incrível, insuportável, mas minha mãe.

Nunca conheci um avô sequer. Nem por parte de mãe e muito menos por parte de pai pelos motivos citados acima. Perdi tios, mas com todo o respeito, nem se compara.

Silêncio. Meu. E dela.

Ela passa a ponderar e eu peço que espere.

Estava ruminando a informação.

 

Logo eu. Escritor de contos e crônicas. Que abusa da morte e da perda em minhas histórias. Como que eu, não sabia nada daquilo?

 

O que é o luto? Pensei após algum tempo em silêncio. Como todo autor do meu tempo, fui pesquisar. Descobri que o luto que representamos na cor preta aqui nas Américas, são representados pela cor branca na China. Sem piadas com roqueiros por lá.

Já no Japão eles escolhem a cor azul. Mas, independente disso, luto é o sentimento universal de tristeza profunda ao perder alguém.

Perder.

Questão de perspectiva.

Perder.

Eu sei sobre perder.

Rompi o silêncio e perguntei.

 

— Quando você diz perder, necessária precisa ser para a morte?

 

E agora ela estava em silêncio.

 

Pensei em minha esposa. Pensei em todas as manhãs acordando juntos. Em passar o café não como eu gosto, nem como ela gosta, mas sim no meio termo. Nas séries que combinamos de ver juntos e eu não ouso dar play sem sua companhia.

No sofá que ela dorme e eu às vezes durmo, pois até nossa presença precisa de folga por vezes. Penso nas meias, no sabonete e as bolachas Bauducco que dividimos. A pizza que religiosamente pedimos há 200 anos do mesmo sabor. O toque atrás das orelhas, escovas de dentes, seu cabelo no ralo do banheiro.

Seu riso em minhas piadas sem graça. A cocega em seus pés que ela odeia. Seus traumas e os meus. Sua ojeriza por pimenta. Sua bad devido a traumas passados e isso é só um resumo. E me pego pensando sem tudo isso.

Penso na ausência de tudo isso e sinto luto.

Luto pela perda.

Sentimento profundo de tristeza pela perda de alguém. Não necessariamente para a morte, porém perder para mim mesmo.

Por mim mesmo.

Por minha causa e somente minha.

Perder por incompetência e eu tenho tantas. Tantas amarguras, desgosto, todas as palavras do dicionário me trazem a segurança que luto é mais que a morte de alguém.

É a perda.

 

Bento.

sábado, 16 de abril de 2022

O ASSASSINATO DE BÁRBARA em Ebook na Amazon. Já disponível para compra

 


"Carlos estava tão acostumado com a dificuldade de ser quem era que não sabia reconhecer algo bom em sua vida. Seu psicólogo Benedito Quaresma acreditava que todo problema era resolvido com violência. Juntam-se então para planejar O ASSASSINATO DE BÁRBARA".

Preço de lançamento do meu primeiro ebook publicado na Amazon.
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quinta-feira, 17 de março de 2022

TERMINAMOS A VIDA COM UM CAPÔ ACIMA DA MARCA DA CUECA


Existe uma espécie de homens como eu que passaram toda a adolescência magros como os dedos médios de um mendigo . Tão magros como os frequentadores da cracolândia. Apelidos nunca nos faltaram. Lagartixa, esqueleto, palitos de dente, espeto de churrasco, cabo de vassoura, etc e etc.


O que poucos acreditam é que nunca fora falta de alimentação, pelo contrário. Tenho amigos tão magros quanto eu que poderiam comer tantos doces quanto duas gordas lésbicas na TPM. Comeriam mais comida que um time todo de futebol profissional. Sem falar nos litros de cerveja. Cascos e mais cascos de cevada e carnes gordurosas na grelha por dias a fio. E no máximo eles ganham 1 quilo antes de cagar. Depois de evacuar como um gigantesco cuspidor de bosta voltam ao peso normal.

Contudo, isso acontece até certa idade reparei. Reparei pois estou presenciando isso em tempo real. Era eu então blindado como uma máquina de guerra dessas de filmes da segunda guerra mundial. Tinha eu um poder de recuperação de uma noite mal dormida como se fosse um Wolverine. Noites e noites de bebedeira, um coração tão forte que passava sangue para o meu pau como uma VAP, aquelas máquinas de lavar quintal. Não mais.


Não mais, pois tudo acaba um dia. Assim como toda festa tem seu fim. Como todo fim de cigarro deixa um gosto amargo na boca. Assim como no fim de algumas transas sentimos uma forte tendência ao suicídio. Não é diferente com essa fase da vida. Tudo acaba e o que é bom dura pouco, tão pouco quanto um Yakut. Isso mesmo após inventarem o leite fermentado de litro. Acha que eu tô exagerando? Tente misturar vodka neles e parar de beber. É como ficar bêbado com lembranças de infância. Ou seja, é o útil e agradável. É como mamar nos peito de uma grávida, ou transar com uma garota vestida de cosplay de Pokémon. Você mistura o bom da infância com a melhor parte de ser adulto e BUM. Vira um vício. 


Voltando.

Chegamos a idade do pré idoso graças ao bom Deus, afinal se dependesse da gente tava todo mundo fodido. Passamos da idade de comer e cagar como um pato e passamos para a idade da barriga de cadela. Sim. Barriga de cadela.


 Barriga de cadela que é o formato da protuberância que passa a se formar no nosso abdômen como um ponto final da vida. Como um calo ela cresce, como a espinha no rosto do adolescente ela incha. Assim como nossos joelhos acusam o exercício nosso abdômen cresce. Somente o abdômen. É uma maldição do cigano bem como escreveu Stephen King. Bem como a calvície chega, nossa barriga da sinal de vida. O nosso pau acompanha tudo aquilo como se fosse um tsunami cobrindo todo o seu corpo até o ponto que só é possível visualizar metade dele. Homens como nós passamos a vida comendo pouco e bebendo muito e somos aqueles que doamos nossa saúde ao bem maior. Garçons, valetes, torneiros mecânicos, serventes de pedreiro, motoristas de aplicativos, mestres de obra...

Nós giramos o mundo. Alimentamos o mercado desde o aluguel do boteco até a faculdade da puta. A economia depende de nós. Não somos e nunca seremos daqueles caras que entram na academia jurando comer batata doce até deixar os personais ricos e seus glúteos sinuosos e pontudos. Não nós. A vida para nós é mais simples. Nos basta os braços de Popeyes e cagamos para sacolas reutilizáveis. Porém, ao contrário de nossas mulheres que ficam mais corpulentas e mais gostosas com o tempo nós vamos criando essa espécie de câncer na região da cintura que vai crescendo como um bolo de cenoura feito aos domingos para recepcionar os parentes que desejamos sempre distância.

O grande sinal da idade. Inevitável pesar do pré mortin. Fim da vida adulta e consultas ao urologista. A barriguinha nos entrega a idade. Tentamos, porra, se tentamos. Roupas novas. Trocamos de carro. Descobrimos até músicas novas que façam parecer enganando a idade, mas a concha que passa a sobressair na camisa não nos deixa enganar. Não há coisa mais triste que uma pochete de carne acima da pélvis para um homem como nós. Logo nós. Eternos beberrões e historiadores da vida mundana. Terminamos a vida com um capô de fusca acima da marca da cueca. Triste fim.


Bento.


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segunda-feira, 1 de julho de 2019

AQUI VEM O JOHNNY ep4

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Foto de APOLLONIA SAINTCLAIR


Ainda é quinta feira e não há dia mais tedioso. Quinta feira é muito longe das segundas, o que nos faz sentir muito cansaço e é muito longe da sexta que nos faz sentir ainda mais cansados. É o centro de uma semana que pode ser muito boa ou uma merda. No meu caso, uma bosta. Como todos os dias. A parte boa é que preparei uma marmita com o restante do jantar de terça ainda. Fiz uma pururuca com o mamilo que ficou uma delícia. Um pinguinho de limão e hummm. Para quem nunca tinha provado carne humana até que me saí bem. Cortei em bifes e refogue com azeite. Uma verdadeira iguaria para comer tomando uma cerveja. Mas bem que poderia ser uma boa taça de vinho, vai de gosto.
Meu psicólogo sempre disse que o ideal é que eu não fique entediado. Ele diz isso para que eu não fique pensando besteira e acabe sendo pego fazendo alguma merda. Meu psicológico diz sempre para eu nunca agir de cabeça quente. Planejar é o melhor negócio, porém não é meu isso. Então acabo esfaqueando alguém pelo simples fato de me irritar e o tédio me deixa irritado e quanto mais irritado mais corpos são deixados para trás e maior o risco de me pegarem.

Quaresma sempre me disse que assinatura é para vaidosos. E vaidosos sempre são pegos porque querem ser pegos. Eu só sinto prazer em limpar o mundo de idiotas. É simples. Sempre tivemos uma boa conversa. Ele é uma das poucas pessoas que minha paciência permite conversar por mais tempo. O problema é que a hora é bastante cara, o que dificulta falarmos mais. Ouço dele que entre seus pacientes sou aquele que tem mais potencial e isso me deixa feliz. Mas é difícil não admirá-lo. Só não suporto sua secretária, mas ele foi bastante enfático ao dizer que qualquer um que tocasse num fio de cabelo dela teria das mortes a mais demorada e sofrível e fica difícil não acreditar quando seu queixo pontudo mira seu rosto e seus olhos queimam feito brasas.

Então para não desviar tanto do assunto, digo que para fugir do tédio pensei em convidar alguma garota aos meus aposentos. Na lista de telefones não encontrei nenhuma que me enchesse os olhos e é bem verdade que carne humana tornou-se uma especiaria da melhor qualidade além de me despertar o paladar e talvez eu queira repetir. Pensei em uma prostituta, contudo nunca se sabe quais doenças essas pessoas podem trazer bem como os mendigos.

Fim de expediente e ainda tenho o gosto da minha marmita na boca. Foi quase como um orgasmo degustativo. Saio do prédio, me surpreendo com a chuva e eu odeio chuva. Estava tudo bom demais para ser verdade e eu deveria ter percebido que quando tudo está calmo demais logo acontece algo para foder com a vida. Então acho melhor correr até a marquise mais próxima, acendo um cigarro e não demora muito para passar um táxi. Entro fumando e ele me pede que jogue o cigarro fora. O que faço não muito contente. Eu sou da época que se fumava em qualquer lugar. Em restaurantes, bares, elevadores, lojas. Agora é proibido fumar em todo lugar e não demora muito vão proibir o fumo mesmo na rua.
Dentro do táxi o motorista puxa aquelas conversas sobre chuva, tempo, qualidade do ar e eu dou sorrisos simpáticos obrigatórios. E já disse que odeio me sentir obrigado a sorrir. Ele é um sujeito gordo e peludo. Quero matá-lo já, mas não sei se quero comê-lo. Ou talvez, a picanha dele deve ser de um sabor muito bom, já que ele aparenta um leitão. Ele cheira a suor e isso me deixa mais estressado ainda. A chuva acontece como um evento, como se não chovesse há séculos e eu acho desnecessário tanta água. Ele ouve uma rádio bosta que por muita sorte começa Dire Straits, tocando Walk of Life e só por isso eu ainda não tirei meu canivete do bolso e cortei-lhe a garganta. A música me acalma e salva a vida do taxista. Então olho pela janela e lá tem um casal dividindo o guarda-chuva e eles são tão feios. Um casal de pessoas estranhas e magras e cabelos sebosos e seus ossos saltando a ponto de agredir os olhos. O cara é magro e alto como um poste de luz, tão feio quanto um totem mal feito, óculos fundo de garrafa e uma roupa preta como metaleiros adolescentes. A garota tem bem menos altura, mas não perde nada para a magreza de seu par a ponto de sua calça jeans sobrar no cós e aparentar um saco de bosta ou uma frauda. Em questão de segundos meu humor vai para o limbo e eu preciso descontar minha raiva e penso que posso muito bem trocar o saco de banhas pelo casal ossudo afinal dois é melhor que um. Pedi para parar o carro, pago o táxi e sigo atrás daquela judiação de casal. Logo imagino o filho que pessoas como estas podem gerar. Eu prometi limpar o mundo de idiotas e isso também inclui pessoas muito feias. Eles viram a esquina e eu vou atrás. Mesmo com a chuva forte viro a esquina e não poderia ser mais perfeito. Mal iluminada, comércio fechados, casas abandonadas. Eles imploram para que eu os mate. E na minha cabeça toca o riff de teclado da Walk of Life. Sorrio e digo baixo “Aqui vem o Johnny”. E eu vou fazer uma canção sobre a faca. Alcanço o casal ao ritmo da música e com cuidado agarro por trás o magrelo alto e seu pescoço fino não cria muita resistência à lâmina da minha faca. O sangue esguicha para todas as direções e parte dele mira o rosto da garota. Paralisada e com o rosto ensanguentado ela nem vê o corpo do namorado cair como merda no chão e duvido que ouve o baque de sua cabeça acertando o cimento da calçada. Rápido e indolor. Ao ritmo da música seguro o pescoço da garota com força e faço o primeiro furo em seu abdômen. Ela praticamente se entrega, apenas se esforçando para suplicar por sua vida achando ser um assalto. Ela não sabe que não tem nada que me interessa, exceto o seio, ou a parte interior das coxa, talvez. Olho em volta e somos só nós na rua. Nós e a chuva. Furo seu estômago no compasso do teclado e canto. Mais uma facada e solto um “Uhun” assim como o cantor faz.

Finalmente chego em casa. O jantar está na mesa.



Bento.


segunda-feira, 24 de junho de 2019

PRIMEIRO PASSO




É preciso reaprender a conviver consigo mesmo.

Só.

Como era antes.
Não que já não o fosse, mas ter alguém que depende de você para tudo como um filho não é bem ter companhia. Não é a companhia que se espera quando se é um casal.

Só.

É necessário reaprender a conviver consigo mesmo.
Todos os demônios e traumas e a culpa.
Inevitável.
É inevitável que em alguns momentos você se culpe por tudo. Será que o errado é você? Será que poderia ter feito mais? Será que poderia ter sido mais paciente? Será que poderia ter dado mais sangue mesmo depois de ver seu corpo cadavérico em frente o espelho? De lábios roxos até as costelas saltando pela pele.

Será?

Será que não exigiu demais do outro?
Será que o problema não está em você exigir mais que as pessoas podem lhe oferecer?
Será que o erro está em você ser romântico demais e talvez passou tanto tempo com a cara enfiada em romances de autores infelizes idealizadores de dramalhões impossíveis de acontecer na vida real? Onde empregos, boletos e peidos e bafos e porres nunca são mencionados.

O quão difícil é dormir e acordar debaixo do mesmo teto que vocês planejaram o futuro que jamais vai acontecer? E as paredes que olham e te julgam? Será que você não se precipitou? Você tem um histórico de ansioso e que mete os pés pelas mãos.
Você nunca foi o tipo que conversa. Pelo menos não sóbrio. Arrancar-lhe sentimento sempre foi sofrível exceto depois de uma bateria de doses de whisky. É por isso que nunca consegue escrever uma linha sincera sem despertar o fígado. Seu corpo é uma máquina de absorver álcool e autoflagelo.
Você consegue ser o cara que dorme na sarjeta de bêbado, porém não atrasa um boleto.

Equilíbrio?

Logo você?

Difícil imaginar que alguém como você tenha esse tipo de equilíbrio, contudo para continuar fazendo o que mais gosta precisa disso. É como uma missão. Desaponte todos, inclusive você, mas mantenha um maço de notas para a garrafa e um lugar para voltar quando os sentidos estiverem embaralhados ao ponto de não pensar mais no que está fazendo.

Só?

Você foi o primeiro a chegar na sua vida e provavelmente será o último a sair. Tão só quanto chegou e só o que lhe resta são as lembranças, boas e ruins.
Você que já se meteu em cada enrascada e teve anos de marasmo e estava disposto a tomar isso como regra. Já tinha desistido de ser o grande cavaleiro solitário e destemido. Acreditou que desta vez iria entregar tudo que tinha de melhor e que seria a última vez que teria que juntar seus cacos. No fim viu que a solidão apesar de uma companhia indesejável ela ainda permanecia ali. Quando decidiu tornar-se o porto de alguém reparou estar à deriva. Tão só como sempre foi. Logo, solitário de um jeito ou de outro, que pelo menos tenha liberdade.


Bento

UM BIFE NA SACOLA JUNTO DO WHISKY ep3




É terça feira e ouvi dizer que é outono. Cago para essas coisas pois as pessoas fedem nas quatro estações do ano. Se duvida pegue um transporte coletivo todos os dias e verá. Outro dia peguei um ônibus com um cara que exalava um fedor azedo que ardia os olhos e as narinas. Mas não é só por isso que digo, as pessoas, num todo fedem. Todas elas. São animais em busca de presas fáceis. Eu já fui uma delas durante dois anos sendo mastigado e tendo meu sangue sugado aos poucos, de canudinho, por alguém que dizia ser a pica das galáxias e tão fiel quanto um fígado. Engano meu é claro. Bastou que o fornecimento de sangue acabasse para este ser humano, se é que podemos chamar assim, mostrasse sua verdadeira identidade. Suas verdadeiras intenções. Bom, logo após troquei de cama para tirar aquele fedor, como quem abrigou um leproso. As pessoas fedem à ponto de, com o tempo, eu sentir seu cheiro de chorume de longe. Desenvolvi uma técnica e sinto o cheiro de podridão no instante que elas entram em meu raio de ação. Não é à toa que tenho tantos corpos em minha conta. Ninguém começa a fazer o que faço do nada. Não se acorda um dia e resolve sair acabando com a escória do mundo. Só se você for um psicopata, mas não eu. Eu só estou livrando o mundo deste odor podre que não vale a bosta que caga.
Interrompo o devaneio porque já é tarde e preciso terminar um relatório. Lembro que não como uma refeição decente desde sábado de tarde, mas nesse meio tempo já matei duas garrafas de whisky. Saindo daqui compro mais uma já que as minhas acabaram segunda de manhã.

Termino meu trabalho e resolvo que não posso voltar para casa de estômago vazio. Mas cheiro de comida, fritura, comidas habituais me embrulham o estômago. Por isso quase não como. Meu organismo pede algo saboroso. De dar água na boca, salivar até ter de engolir.
Paro no bar com a garrafa que comprei. Deixo no balcão e peço uma boa dose de whisky. Gostaria muito de comer algo, mas no bar, aqueles salgados fritos de manhã me encaram com cara de que já foram servidos às moscas durante o dia inteiro. Não como restos de insetos. Meu estômago ronca, mas não dou ouvidos a ele. Sou mais amigo do fígado como já disse. O balconista me serve com cara de bunda, talvez preferisse estar em outro lugar. Eu também, mas nem por isso destrato as pessoas. Só não gosto de sorrir muito. Em dois goles mato o whisky e parto. Fome, muita fome, mas o cigarro ajuda a amenizar.

Vi na TV essa história da carne e me embrulha o estômago, já não sou fã de comer, porém, carnívoro incurável que sou, sobra o quê? Nada como um belo bife para animar o dia. Estão querendo tirar até isso de nós.
Já é tarde. Poucas pessoas na rua. Preciso inventar algo para comer antes que desmaie por aí e me confundam com algum mendigo. Qual sabor deve ter mendigos? Penso. Apesar que entre comer mendigos e carne com papelão, fico com fome. Estou na rua de casa. É terça e uma garota desce a rua de salto, mas com pressa. Talvez assustada com minha presença àquela hora da noite. Ela se agarra à bolsa como se fosse seu bem mais precioso, muito por achar que sou um ladrão, provavelmente. Nem meu terno e minha barba feita ajudam neste momento. Penso que ser mulher complica tudo. É ameaça vindo de todos os lugares. Sempre odiei aqueles caras que acediam mulheres em vagão de metrô, em bares e etc. Ela usa uma calça social e um coque já bagunçado. Vejo certa dificuldade em andar tão depressa pela calçada acidentada. Imagino ela caindo e um sorriso vem no canto da minha boca. Seria engraçado para terminar um dia tão estressante. Olho para trás e ninguém. Ao lado, fábrica e comércio. À frente uma caçamba e uma praça mal iluminada. Meu estômago ronca e o pescoço branco da garota andando toda torta à passos rápidos pisca toda vez que ela passa abaixo de um dos poucos postes que tem na rua. Tenho fome e lembro da matéria que vi no jornal. “Mulher morta encontrada sem parte do seio”. Penso, por que não?

Uma grande pedra para amassar o crânio. Um pedaço de vidro para arrancar um pedaço do seio direito. Tudo cedido pela caçamba que provavelmente foi colocada por Deus em meu caminho. Com a fome que estou, poderia comer crua mesmo. É de lamber os lábios. Pequenas tetas sangrentas em minha mão e só por isso não julgo o assassino que mordeu o seio da garota morta. Ao invés disso coloco o bife na sacola junto do whisky e caminho para casa. Finalmente uma refeição depois de dias.


Bento.

Imagem de Apollonia Saintclair


segunda-feira, 16 de julho de 2018

GOTAS DE SANGUE REPOUSAM EM MINHAS BOTAS PRETAS ep2


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Imagem de Apollonia Saintclair


Finalmente é segunda feira e o celular desperta freneticamente até que eu o escuto. Abro um dos olhos apenas para apertar a opção soneca e repito isso várias vezes até que acordo finalmente. Preferia estar morto, mas tenho que trabalhar. As contas não serão pagas sozinhas e os problemas no escritório não serão resolvidos sozinho.
Primeiro o cigarro como de costume. Me apresso o máximo possível para fazer o café? Claro que não. Não me arrisco à levantar da cama antes de terminar o primeiro cigarro. Enquanto isso penso em dezenas de motivos para não ir trabalhar e nenhum deles me convence.
No banheiro descarrego todo o álcool que bebi há dias com certa dificuldade já que o pau está tão duro quanto um pedaço de madeira. Chega a doer e por isso decidi terminar na pia para facilitar. Já estou atrasado antes mesmo de começar e preciso fazer café.
Fico me perguntando por que afinal eu já não faço café antes de dormir para que já o tenha pronto quando acordar e chego a conclusão que de noite estou bêbado e só consigo pensar se tem ou não álcool suficiente para alimentar meu vício.

Café pronto, volto ao banheiro para beber e fumar e pensar na vida. Na verdade não há muito a ser feito exceto ir vivendo os dias conforme o Destino nos apresenta. Todas as conversas inúteis, as amizades falsas, os mendigos pedindo esmolas. Todos os olhares de escanteio por causa de um sapato diferente, um penteado mal arrumado, um pelo na barba fora do lugar. As pessoas mais estranhas parecem comum para outras e isso funciona também com ações e todos fingimos sermos educados em busca de aprovação e eu não sou diferente. Não para buscar aprovação, mas para não levantar suspeitas, já que no dia anterior deixei quatro cadáveres para trás. Assim que saio do banho ouço rádios de polícia na minha porta e vou olhar pela janela. Na verdade estão em frente a casa do vizinho. Alguém não voltou para casa naquele domingo. Ouço os policiais comentando sobre a cena. Palavras como banho, sangue, massacre parecem querer erotizar a coisa toda. Porém são só pessoas, mortas, bem como animais são mortos em abatedouros todos os dias e ninguém dá a mínima. Não vejo como somos tão diferentes deles. Fedemos e matamos tanto quanto. Enfim chegam à minha casa perguntando se ouvi ou vi algo e nego dizendo que cheguei tarde no sábado e passei o domingo dormindo. O que não é de todo uma inverdade. O policial parece compreender já que está com uma cara de ressaca tão incriminadora quanto a minha. Muito simpático para um policial. Não quis esticar muito o assunto talvez pelo meu roupão de banho ser rosa com grandes flores lilás. Não o culpo, mas o roupão era de uma garota que esqueceu ao partir da minha casa. Peço um cigarro e ele tem. Só não é dos meus. Pena. O meu estava acabando e antes de nos despedimos ele pergunta como eram os vizinhos ou se eu havia presenciado alguma briga entre o casal. Digo que não pois não fico muito em casa já que estou sempre trabalhando, por fim entro e vou me vestir.
Muitos policiais, muito barulho. Pessoas amontoando-se na rua para tentar ver alguma coisa. Um ou dois carros da imprensa, mas nada demais. Só mais um crime banal na cidade grande. Cada vez mais as pessoas estão habituadas à violência e sangue e crimes e famílias inteiras matando-se por motivos fúteis. Crimes passionais, crimes por motivos mesquinhos e tudo o mais. Ninguém se importa, só querem ver, saber para poder ter assunto no almoço com o pessoal do trabalho, postar no Facebook ou YouTube. Mas na verdade, ninguém se importa realmente que dois casais morreram assassinados num almoço de domingo. Um simples almoço de domingo. A sociedade está calejada de crimes ediondos tão ou mais devastadores que este. Nem morte de crianças impacta esta geração. E eu sigo andando pela rua à caminho do trabalho.
Meus cigarros finalmente acabam e acho melhor não parar na padaria perto de casa. Muitos policiais me deixam nervoso e a segunda feira mais a ressaca já mexem demais com meus nervos. Continuo andando até um mercadinho e peço minha marca favorita. Só temos Eight, ela diz. Com um sorriso simpático que me dá nojo. Sorrisos simpáticos forçam você a devolvê-lo com mais simpatia e eu já sou obrigado a trabalhar e conviver com pessoas que eu não gosto, sorrir para elas é sacrificante para mim. Pergunto se não tem outra marca, ela diz que não, mas que aqueles cigarros importados ilegalmente do Paraguai são ótimos também. Eu estou prestes a sair com sua negativa, mas depois de querer me oferecer cigarros ilegais, que sonegam impostos, que não geram empregos, que matam nossa economia, sem falar na saúde de quem os consome, foi praticamente como cagar na minha cara e querer que eu agradeça depois. Sempre com aquele sorriso simpático de merda colado em seu rosto enrugado de quem abriu um mercadinho para ajudar na aposentadoria.

Decidi colocar meu sorriso mais simpático no rosto e digo que vou aceitar sua sugestão e assim que virou-se acerto o lado de sua cabeça com a máquina de cartões. Ela cai para o lado como um presunto gordo e velho. Dou a volta no caixa e passo a pisar em seu rosto com minha bota de solado militar. Uma, duas, três... Até que sinto quebrar algo como a casca de um ovo quebra ao ir para frigideira, então paro. Satisfeito, mas com uma puta vontade de fumar. Limpo a sola da bota na calça da velha até ouvir um barulho vindo do fundo do mercado. Um rato escondendo-se do gato, estava satisfeito e calmo, mas não poderia deixar ninguém para trás. Seria injusto com a velha e comigo. Na geladeira pego uma garrafa de cerveja, um bom trago com certeza ajuda qualquer crise de estresse. Geladinha, quase de doer o dente. Me aproximo sem muita pressa, mais um gole e acho o rato. Um garoto, não mais que dezesseis anos, magricela como uma garota se escondendo atrás do balcão de pães e frios. Ele se assusta soltando um grito agudo assim que quebro metade da garrafa no balcão derramando o restante da cerveja. Acho um desperdício jogar fora metade do líquido delicioso principalmente quando é importada, mas são ossos do ofício. Agarro seu cabelo com força pressionando contra os pães e a garrafa corta-lhe a garganta entrando bem fundo enquanto o garoto está abaixado com lágrimas nos olhos. Gotas de sangue repousam em minhas botas pretas. Fácil de limpar. No relógio ao lado dos frios reparo que estou atrasado. Não era um bom dia até eu sair da cama, mas as coisas estão melhorando. Cigarros! Lembro que preciso fumar.
Parto em direção à porta. Fui inconsequente penso. Alguém poderia aparecer nesse ninho de rato e eu ter de acabar com mais um cadáver na conta. Ao passar pelo caixa, reparo, ao lado da caixa registradora, quase não notei. Como sou burro! Ou sortudo. Danadinha, digo ao corpo da velha morta atrás do caixa. Se tivesse falado que era fumante... E ainda mais da minha marca favorita. Pego o maço na caixa registradora, retiro um e foi um trago delicioso. Devolvo o maço. Melhor correr para o trabalho.


Bento.


terça-feira, 12 de junho de 2018

MENSAGEM DE DIA DOS NAMORADOS

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Tem uma coisa em relações que precisa ser dita. Nada é o que parece. Sei, é meio clichê. Chega a parecer título de livro erótico que se vende em banca de jornal. Contudo, eu conheci Bukowski na banca de jornal, logo não julgue sem conhecer antes. Pensando nisso, digo logo, nada é o que parece. Entenda; as pessoas escondem o que não aprovam, ou o que acreditam não ser aprovado pela sociedade e hoje em dia se vive cagando regra sobre o que se é permissível ou não. “Será que aprovam?”. “Será que vou ganhar likes?”. “O que será que vão comentar sobre isso?”. Conceitos são ditados pelas mídias sociais, que basicamente se consiste em velhas que ganharam smartphone de seus filhos sentindo-se culpados por não dedicarem tempo suficiente aos idosos e jovens virgens que não fazem amizades na escola e se sentem poderosos quando online. Aliás, somos todos lindos online, é como Nárnia, poderosos e fodões. Aos olhos alheios, claro. Postamos “cozinhando" e logo imaginam que você é basicamente um Master Chef anônimo, mas você está fritando um ovo com bastante dificuldade. Relações são assim também. Ao olharmos um casal de mãos dadas passeando numa noite quente, com a lua desnuda, logo imaginamos que devem ser o casal mais feliz do mundo. É normal imaginar que todas as pessoas do mundo são mais felizes que você. Contudo, o que você não sabe e provavelmente acontece é que a garota deve chupar o irmão dele apenas por vingança, pois ele já a traiu várias vezes confiando que ela sempre vai perdoar, afinal, já perdoou tantas vezes.

Quando vê um casal saindo do mercado e você olha o cara, de rosto marcado pelo tempo e peito avermelhado à mostra carregando sacolas e o saco de carvão. E sua esposa empurrando um carrinho de bebê num sábado ensolarado logo imagina que será um maravilhoso churrasco em família. Um baita pai, uma mãe exemplar e sua pequena cria abraçados e transbordando amor. O que você pode não saber é que talvez este cara quando fica bêbado espanca a esposa na frente da criança, que ele ainda não sabe, mas não é dele e a esposa tem certeza que o dia que souber ele vai matá-la na porrada. E talvez torcer o pescoço do bebê.

E provavelmente você vomite arco íris ao ver um casal de adolescentes. Tão jovens e com tanta coisa para viver e nesse mundo de tanta tecnologia, informação em abundância e com tanta comunicação instantânea eles escolheram descobrir o mundo juntos. Em par. Ao mesmo tempo que se descobrem juntos. O que você pode não enxerga devido a distância é que existe a possibilidade do garotão se sentir extremamente atraído pela rola do amigo quando estão no vestiário do futebol. Que ele já acordou com a cueca molhada depois de um sonho onde ele se lambuzava com a porra quente escorrendo pelo seu rosto vendo seu amigo satisfazer-se com aquilo. O que você talvez não consiga imaginar é que a garota foi constantemente abusada pelo tio, que divide a casa com sua mãe, herança da avó. Que enquanto sua mãe ia trabalhar o tio vestia as calcinhas da garota e obrigava ela massagear suas partes íntimas. Isso tudo aconteceu durante boa parte da sua infância e agora que cresceu ainda acha que ninguém vai acreditar nela. Por isso ela pensa todos os dias em matar o tio e depois cortar os pulsos, mas ainda não se decidiu se mata o tio com uma martelada na cabeça, ou várias, enquanto aquele vagabundo tira o cochilo da tarde, ou apenas corte o pau dele e enfie em sua boca igualzinho ele fazia quando ela era mais nova.

Para não dizer que não falei de amizades, aquelas mesmas que não passa uma semana sequer sem juras de amor e fotos antigas no Facebook. O que elas não contam é que um torce para o outro permanecer na merda, mais forte que torcem por seu próprio sucesso, afinal, ser um falido de merda em companhia de um amigo é até tolerável. O que dói só de imaginar é continuar um verme e ainda ter que presenciar seu amigo ou amiga arrumando um amor, que sendo feliz e realizado. Amigos para sempre, mesmo que seja na merda.

Tudo é uma questão de ótica. O filme que você viu na adolescência jamais te trará a mesma sensação de antes. Algumas coisas são boas só na primeira vez. A maioria de nós tenta reviver relacionamentos de anos atrás achando que dessa vez dará certo, agora que o tempo fez seu trabalho e ambos então mais maduros e melhores. O que você não sabe é que algumas pessoas apenas não melhoram. Outras ainda pioram e tornam-se desconfiadas e traiçoeiras, talvez o responsável por essa pessoa se tornar assim seja você. Sim, temos grande influência nas pessoas que passam por nossas vidas, mas sempre para pior. Afinal, não é maravilhoso poder fazer um monte de merda e responsabilizar nosso passado ou pessoas que passaram? Só o que não admitimos é nos responsabilizarmos pelo monte de bosta que virou nossa vida. Seria demais para nós. Alguém precisa pagar por isso. Não eu. E você?



Bento.

quarta-feira, 16 de maio de 2018

O FÍGADO É O MELHOR AMIGO DO HOMEM (Enquanto o quarto está mais vazio que de costume) ep1

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Imagem de Apollonia Saintclair

É domingo e acordo com a baba represada nos fios de barba. Gostaria de dormir um pouco mais. Dormir até de tarde, quando o estômago roncasse tão alto à ponto de acordar os vizinhos. Tão tarde talvez como um personagem de Edgar Allan Poe e só acordar em meu funeral, tendo de unhar a tampa da caixa funerária na esperança de chamar a atenção dos coveiros enquanto reclamam das condições de trabalho e o salário miserável. Ou interromper a discussão da última rodada do futebol quando os nervos estarão ferrenhos em busca de provar que seu time é melhor. Bem, mas quem eu estou querendo enganar? Eu trabalho na segunda e o máximo que consigo é dormir até às dez sendo despertado pela bexiga pressionando a uretra pedindo pelo amor de Deus para ser esvaziada. Os pés gelados como uma lata de cerveja num churrasco. Os olhos ardem ao menor sinal de luz. Por isso uso o tato para achar o maço de cigarros afim de que o primeiro trago do dia ajude no despertar. Acho-o e a luz da chama do isqueiro queima os olhos. A cama está mais vazia que de costume e só por isso ainda tenho parte do lençol cobrindo meu corpo. Não ouço pássaros, nem carros na rua. Apenas o barulho da pressão da panela que provavelmente vem da casa do vizinho e automaticamente imagino o almoço de domingo com pessoas que não se suportam fingindo uma tarde familiar sadia. Escondendo seus segredos e suas angústias para evitar discussões, até que um dos parentes beba demais e fale mais que o necessário, como uma faísca numa fábrica de fogos de artifício. Eu não preciso mais passar por isso, pois minha cama está mais vazia que de costume e é só por isso que bebi sozinho até às duas, ou três da manhã – não me lembro – como se não houvesse amanhã. Então lembro que os cigarros que tenho não vão durar até segunda, que as garrafas que tenho não vão durar até segunda se continuar bebendo neste rítmo e que se não levantar agora pode ser tarde demais para a minha bexiga.

Ao caminho do banheiro, tranço as pernas e agradeço por meu quarto ser estreito à ponto de meus braços abertos alcançar as duas paredes opostas. Reparo que o quarto está mais vazio que de costume, menos roupas, menos sapatos, menos coisas e me apresso para chegar ao banheiro evitando os espelhos, esvazio todo o álcool que meu fígado lutou para filtrar a noite inteira. Com uma das mãos apoiadas na parede acho graça e agradeço secretamente por meu fígado conseguir resistir à noite melhor que eu. Grande amigo eu tenho! E dizem que o cachorro que é o melhor amigo do homem. Quem diz isso é porque nunca matou uma garrafa de Bourbon e sobreviveu para contar história.

Então enquanto vistorio e aprovo o trabalho de meu fígado reparo que o banheiro está mais vazio que de costume. Sem cremes, xampus, sabonetes íntimos, toalhas e cheiro de menstruação. Apenas um pacote de lenço umedecido esquecida acima da caixa de descarga. Enquanto isso ainda sou incomodado pelo fato de que os cigarros não durarão até segunda e lamento o fato que terei de colocar meu par de botas e ver pessoas, falar com pessoas, dar sorrisos falsos e comentar sobre o tempo. Tempo este que olho pelo vitrô do banheiro e vejo que não é dos melhores. É domingo e não há uma sombra sequer. Ainda por cima cai uma garoa tão fina quanto o fio de uma lâmina. Suponho que tão cortante quanto o fio de uma lâmina e é neste momento que me arrependo de não ter comprado mais cigarros no dia anterior. Balanço o pau e dou mais um sorriso de canto de boca pensando que esse não é dos meus maiores arrependimentos. Há piores. Muito piores.

Preciso de café e desta vez terei de fazer eu mesmo, já que minha casa está mais vazia que de costume. Penso se vale o sacrifício de fazer café ou começo o dia continuando o que estava fazendo antes de cair no sono. Por hora, opto pelo café.

Forte e amargo. Não tão diferente quanto gosto dos meus drinques, pois bebemos para esquecer dos problemas, mas não podemos esquecer do sabor da vida. Ouço gargalhadas na casa dos vizinhos e isso me faz despertar do silêncio ensurdecedor. Enquanto ferve a água vou até a vitrola para abafar a alegria da vida alheia. Se eu não te incomodo com minhas aflições, não me venha exibir seu sucesso.

Só o cheiro de café entrando em minhas narinas já me faz despertar ao ponto de voltar a notar que talvez fosse melhor um par de meias para esquentar os pés que agora parecem tão frios quanto peixes mortos no supermercado. Dói ao tentar mexer os dedos para esquenta-los e a água parece preguiçosa ao descer pelo coador de pano levando consigo o café até a garrafa. Espero pacientemente e passo a lembrar do quanto bebi ontem, do quanto bebi antes de ontem e acendo mais um cigarro para esperar e esperar e vejo que a vida não é muito mais que isso. Esperar e esperar. Esperar que a música acabe. Esperar que o ônibus passe. Que o salário caia, que as contas cheguem. Esperar que alguém te ligue, ou pela resposta daquela promoção. Esperar pela nota da prova ou sua vez na fila do banco. Esperar pela mensagem de uma garota ou esperar que as pessoas vejam algo bom em você. Esperar que a vida mude ou que as próximas eleições cheguem. Esperar a estréia de um filme ou que a sexta feira chegue. A vida é muito mais esperar que realmente desfrutar de algo. Então enquanto a água escorre no coador a torneira da cozinha pinga e a garoa lá fora continua e a vida alheia segue e eu me sinto congelado não só pelo frio, mas pelo o tempo que não passa esperando pelo café e talvez eu tenha pegado no sono de novo enquanto espero. Engano meu. Sou despertado de meu devaneio pelo carro do ovo que anuncia mais alto que Sonny Boy Willison ame sua gaita na vitrola. Então meu estômago dá sinal de vida e diz que ovos no café da manhã seriam muito bem vindos, só que eu não vou colocar meus pés gelados nessa garoa fina apenas para satiafazê-lo.

Finalmente café, amargo, contudo forte. Mais um cigarro. Agora John Lee Hooker termina uma canção e ouço mais risadas. Histórias de vida alheia e aquilo me irrita. Misturo um pouco de vodca no café para acordar mais rápido. Penso em lavar o rosto, porém se a água estiver tão gelada quanto meus pés é melhor não. O café quente com sabor de vodca desce pela garganta e arrepia os pelos dos braços. Como o Popeye e seu espinafre. Todo o corpo desperta e se aquece, menos os pés, ainda blocos de gelo. Apelo pelas meias? Ainda não.

Agora os vizinhos além da conversa e gargalhada decidiram colocar música alta com um gosto discutível. Sento-me na beirada da cama como um canceriano sem lar que sou para tomar meu café e fumar meu cigarro desejando que aquele domingo pudesse durar para sempre, porém, sem carro do ovo, sem vizinhos e com os pés quentes. Mas quem eu estou querendo enganar? Eu tenho que acordar cedo na segunda para trabalhar como faço toda semana, independente se minha cama está mais vazia que de costume ou não. Então começo a pensar que todos temos direito de descansar no domingo. Dormir até morrer, mas cientes de que temos de acordar na segunda para morrermos aos poucos em coletivos lotados esperando que o salário caia e que as contas cheguem para esperarmos nas filas dos bancos e mais uma vez sou despertado de meu devaneio por gritos e gargalhadas e barulho de panelas e pratos caindo e talheres em atrito com pratos de porcelanas e de repente me vejo com uma chave Philips do tamanho de meu antibraço presa no elástico de minha calça de moletom tocando a campainha do vizinho e ele não pode ouvir o que digo do lado de fora do portão porque sua música de merda está alta demais. Então ele vem abrir a barreira de madeira, com sua caixa de correspondência pendurada por arames e me dá bom dia com uma lata de cerveja barata na mão. Me convida para entrar. Então sou eu, meus pés gelados e a música horrorosa e eu penso que eu não queria incomodar e digo isso a ele. Eu só queria curtir minhas aflições e agonias em paz enquanto bebia minha vodca com café na esperança de dormir e morrer e ao invés disso sou obrigado a escutar aquelas canções com letras desprezíveis e de duplo sentido. Então ando pelo corredor com meu vizinho à minha frente e decido que alguém precisa pagar por atrapalhar meu domingo. Sendo assim ele é o primeiro. Com a chave Philips acerto-lhe a nuca e a chave passa pelo couro cabeludo e o osso do crânio com mais facilidade que eu imaginava. A primeira serve para ele cair de joelhos em minha frente, com o pé direito gelado calçando um chinelo piso em suas costas para puxar a chave. Nisso um jato de sangue tão quente quanto o café acerta-me o peito manchando minha camiseta branca. Mais essa ainda, talvez tenha que tomar banho, neste frio. A segunda é só por garantia e estouro seu tímpano com o espeto de aço.
Continuo no corredor e vejo minha vizinha, esposa, responsável pelo cheiro de tempero de feijão que tomava conta de minha narinas fazendo meu estômago colar nas costas. Acerto-lhe o olho esquerdo e seu corpo desfalece escorrendo pela chave como o macarrão que ela fervia escorria pelo garfo. Na mesa, mais um casal, que congelou ao ver o rosto da anfitriã coberto de sangue brilhante e escuro. Belisco a carne semi assada na forma esperando as batatas e sinto uma dorzinha no dente. A mulher clama por Deus. O homem decide se mexer e pega a faca ao lado do prato tentando se proteger mais que proteger a mulher. Sinto que a carne ainda está meio dura e mastigo com firmeza, mais dor no dente. Pego a panela com água e macarrão e arremesso em sua direção. Na mesma hora ele cai no chão se debatendo de dor. Sua pele parece descolar do osso como frango frito. A mulher levanta de supetão e reza. Me amaldiçoa. Sua mão em meu peito tenta me afastar em vão. Acerto-lhe abaixo do queixo com força e vejo a ponta da chave Philips sair na parte de cima de sua cabeça desmanchando seu penteado. Parte do couro cabeludo na ponta da chave. Seus olhos apagados me encaram. Com a mão em seu pescoço apertando-lhe contra o armário cheio de louças combinando com aquelas que estavam à mesa retiro a chave. O sangue escorre pelo seu decote. Entro na sala e desligo a música finalmente. De fundo escuto minha vitrola rolando Mustang Sally e sinto paz.

Volto para meu quarto e ao término da música finalmente sou capaz de ouvir a agulha encontrando todos os arranhões do vinil. Com a camiseta suja limpo o meio dos dedos sujos de sangue. Por fim, visto uma nova camiseta, coloco um par de meias nos pés e agora eles estão quentes como pães recém saídos do forno. Finalmente um domingo feliz. Mais uma dose de café. A vida é boa. Se souber aproveita-la.



Bento.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

O PEIDO É TÃO PESSOAL E INTRANSFERÍVEL COMO NOSSOS PENSAMENTOS MAIS OBSCUROS

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Quando eu era jovem sempre fiquei intrigado quando ouvia os professores falarem sobre pensadores. Nas salas de aulas cheias de moleques encrenqueiros como eu, e eu era sempre o pior - segundo estes mesmos professores - por que eu entendia que o cara ganhava um salário só para pensar. E lá ficava eu pensando com meus botões, imaginando um cara que colocava seu despertador programado para acordar às seis da manhã, tomava seu banho, ligava a TV no jornal matinal enquanto vestia-se e tomava o café da manhã. Colocava comida para os cachorros, para o gato e ao invés de sair de casa rumo ao emprego como fazia minha mãe e meus irmãos de manhã enquanto eu me arrumava para ir para a escola o pensador simplesmente sentava numa varanda com sua xicara de café e com seu dedo indicador pressionando a têmpora ficava lá, pensando. Soprava a fumaça do café fumegante pensando e anotando as coisas que entendia ser importantes. Então de repente, nota-se a hora do almoço e pronto! Para de pensar um pouco para alimentar-se e uma hora depois voltar ao trabalho. Sempre imaginei isso como a coisa mais chata do mundo, ou pelo menos UMA das mais chatas. Perguntava-me eu, quem em sã consciência, escolheria ser um pensador? Depois de velho fui perceber que trabalhar num escritório enviando relatórios, atendendo telefones, tendo que pegar ônibus e metrô lotados de gente que fazem coisas bem parecidas com as minhas é bem pior que a vida que eu imaginava que o pensador levava.

Mais velho ainda comecei a invejar tanto a vida dos pensadores que passei a desejar uma vida igual. Afinal, trabalhar em casa, para gente como eu que suava frio quando ouvia notícias sobre greve do metrô seria maravilhoso.
No fim descobri que pensador pode ser qualquer um de nós e não necessariamente ganhamos algo para isso. Mais ou menos como a música, nem sempre os melhores são reconhecidos. Com isso cheguei à conclusão que o problema não são os pensadores ou os músicos, ruim mesmo é envelhecer. Tantas ilusões.

Por esses dias peguei uma gripe e me entupi de remédios. Todos aqueles conhecidos que prometem curar a gripe e até um ou outro que consegui clandestinamente sem receita para curar-me. Adiantou momentaneamente, pois cinco dias depois cai de gripe de novo.

Tenho um grande problema com medicamentos e contra eles, pois enquanto os consumo não posso beber e isso é um problema enorme. Está certo que vez ou outra misturei vodca com xarope para curar a gripe e fiquei numa loucura tamanha, mas isso é uma história para contar em outro momento. Por isso só me medico em último caso, pois acredito piamente que não há doença que o álcool não possa curar, com exceção da doença da idiotice, essa... Nem Deus poderia. Enfim, estava com uma gripe longínqua e devido a conselhos familiares e de minha namorada resolvi tomar antigripal e antibiótico. Veja minha situação, sou corintiano desde que nasci, qualquer coisa que envolva a palavra anti já me causa descrença instantânea. Bom, resumindo; claro que não deu certo. Acabou que eu fiquei no remédio, sem beber uma gota de álcool e não melhorei. Mas... E friso o "mas" por que realmente deve-se chamar atenção ao fato. Então, é justo que pare, respire profundamente e se diga, lá do âmago; MAS... bastou uma boa noite de bebedeira com destilado e escrita para a coriza recolher-se ao nariz, a garganta dar a pausa à tosse e tudo mais ir pra casa do caralho. Tem gente que não acredita. Acha exagero. Acha que é mentira de bêbado, porém afirmo que nunca tive uma doença que o álcool não curasse.

Pensando nisso, enquanto doente e tomando minha cagibrina, lembrei que a muito não parava para beber sem preocupação. Digo, de pausar qualquer pensamento mesmo. Sem pensar em contas, em relações, em trabalho. Apenas sentar, beber e sair escrevendo. Reparar em cada aranha que faz moradia nos cantos do quarto. Em cada mancha de umidade. No barulho do motor da geladeira da vizinha. No salto alto da nora da outra vizinha quando ainda vira a esquina, que chega de madrugada voltando da balada, e logo depois pega o molho de chaves na bolsa para abrir o portão. Os carros que passam e raspam o assoalho na lombada. E os gatos correndo brincando no telhado. E no momento que escrevo isso lembro de quando adolescente, quando trabalhava de office-boy sonhava em estar em casa, ouvindo Frank Sinatra, com a chuva de dez dilúvios batendo na janela, frio de matar, e eu dentro de casa tomando uma boa xícara de café preto para esquentar o corpo vestido de calça de moletom e seres me pagando só para escrever. Vê que desde muito jovem eu era velho e solitário? Nunca fiz questão de companhia. Nunca me senti sozinho comigo mesmo. Sempre tive algo para reclamar, é claro, afinal escreveria sobre o quê? Mas sempre fiz questão de manter-me sozinho pois minha companhia sempre me foi suficiente. Evidente que vez ou outra você precisa da companhia de outras pessoas para que não passe a vida dependendo de uma alegria masturbatória, uma mão amiga vez ou outra é indispensável. Porém a solidão assusta a maioria das pessoas. Hoje em dia solidão demais é confundida com depressão, não sei se por influência da indústria farmacêutica, da mídia ou dos analistas, mas acho que subestimamos uma boa solidão, estar só, falando apenas consigo mesmo, e desvendando nossos próprios segredos. Tem gente que se assusta com seus próprios pensamentos e por isso tenta sempre estar rodeado de pessoas. Se o sujeito não consegue se abrir com ele mesmo, algo está errado. Quer um exemplo? Somos tão mais tolerantes com nosso peido que com os dos outros, claro. Peidamos debaixo das cobertas e cobrimos a cabeça. Cheiramos nossos gases e damos risada. Já qualquer flatulência alheia nós achamos o fim do mundo, pois o peido é tão pessoal e intransferível como nossos pensamentos mais obscuros, mas ainda assim dividimos com poucos que conquistam nossa confiança.

Digo mais, passei meses segurando peido no começo de meu namoro. Tanto que por várias vezes tive que sair do quarto só para peidar e era um alívio do tamanho do mundo. Hoje, ainda bem, eu e minha namorada dividimos nossos peidos como dividimos uma mesa num restaurante, ou uma pizza.

Sendo assim, acredito piamente que a solidão nos ensina humildade. É preciso reconhecer nossos defeitos para lidar com o defeito dos outros, qualquer coisa diferente disso se transforma em hipocrisia. Então depois disso tudo, digo para aqueles que ainda permanecem descrentes com a solidão, friso que a pior solidão não é aquela que você sente quando está só, num quarto escuro ouvindo blues e tomando algo forte. Ou quando se está numa cabana no meio do mato tomando café e relendo um livro clássico. Não é a solidão de término de namoro onde se fica em casa comendo chocolate e assistindo comédia romântica, nem a solidão de uma prisão tão pequena que mal consegue ficar ereto. Não, pois esse tipo de solidão tem também a ausência de esperança. Você não espera nada dela. É tão somente você e um grande vazio. Assim ficamos alheios a tudo, nada pode nos atingir. Somos invencíveis, inabaláveis, imortais e inatingíveis.
Digo que a pior solidão é aquela que sentimos quando estamos no meio de uma multidão ou num relacionamento de via única. Quando percebemos que o próximo não tem tanto interesse em nós como temos deles. Afinal, nestes casos, a solidão vem junto da frustração de esperar e esperar que o outro indivíduo sinta prazer de sua companhia e se alegre pelo simples fato de te ver feliz. Essa solidão, sequer um mar de whisky poderá dar jeito.



Bento.