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É curioso como a garota entra na loja de doces aos pulinhos e sorriso amarelo ao comprar chocolates pela segunda vez. Isso é a culpa de saber que gorda ela já está, mas mente para si mesma dizendo “um a mais não vai matar”.
E o fumante que quer parar de fumar, "não sou viciado" ele diz. No meio da greve de nicotina experimenta um cigarrinho depois do pingado, afinal “algumas tragadas não me farão mal.”
O viciado em pornografia que esconde um ou dois filmes em cima do armário, que é “para a hora do aperto”.
A vítima do “pé na bunda” que ainda assim não deixa de ligar como se tudo corresse normalmente; “liguei só pra saber se está bem”.
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Uma vez me chamaram de mentiroso e fiquei “emputecido”. O único que pode dizer isso de mim sou eu mesmo.
Sou o único alvo de minhas mentiras, com a cara deslavada me engano e gosto.
São mil desculpas que crio no caminho de casa, sou meu próprio marido traidor.
Discurso durante horas no pé do meu ouvido na esperança de me passar para trás.
Sou o eleitor e o elegível.
Sou a filha com a desculpa de estudar para a prova em grupo para na verdade ir ao cinema com o namorado, e sou a mãe que se orgulha da dedicação da filha aos estudos.
Sou o aluno que culpa o cachorro de comer seu trabalho escolar, e o professor que engole a desculpa já gasta, sou até o cachorro réu desavisado.
Sou o que estaciona em lugar proibido e gasta o latim dizendo que foram “só cinco minutinhos”, e o amarelinho que ouve a mesma mentira pela décima vez no dia.
Sou novamente o cachorro que faz cara de coitado depois da arte e sou o dono que desiste do castigo por dó.
Tenho sido por um longo tempo a testemunha que me acusa do crime acabando com meu álibi.
Meu próprio carrasco, esperando pelas minhas últimas palavras e não faço nem questão de capuz. Não ligo se tiver meu próprio rosto gravado em meu último olhar.
Longo tempo de martírio, mas eu acho que já basta.
Passara muito tempo e sinto que sou o único a contar uma história que já não tem importância nem para os personagens principais, muito menos os coadjuvantes.
História essa que ninguém fez questão alguma de registrar nos livros didáticos.
Talvez tenha sido um conto que eu mesmo tenha criado dentro da minha cabeça como fiz com tantos outros.
Fingindo ser um e ser outro, um casal feito pelo autor. E o trouxa aqui teve de escolher encarnar justo o que ficou e sofreu, e chorou, e bebeu, e lamentou-se, e chorou, e sofreu de novo. Ao invés de me enfiar dentro do corpo de quem se foi e viveu, e viajou, e continuou, e viveu, e sorriu, e casou-se, e continuou, e sorriu, sorriu, e sorriu.
Nem em minha própria história eu me saí bem, com final feliz. Se me resta algo é sorrir - pior é que eu não me aguentei e tive mesmo que rir ao escrever isso – afinal chega a ser cômico mesmo, depois de ser trágico é claro.
Desde meu primeiro texto inocento minha cúmplice, tomando para mim toda a culpa do crime. Eu planejei, eu investi, criei todo o plano, eu comprei a arma, eu arrombei o peito, fui eu que abri a caixa torácica e matei o amor. Eu, eu, eu. Sozinho!
Crime sim, pois assassinar o amor é um baita de um crime bem ferrado. Aliás, ferrado fiquei eu, assumindo toda a culpa sozinho.
Perdi a oportunidade de me salvar quando lá estava eu num cubículo fechado, me fazendo companhia só o espelho e a mesa que talvez por falta de originalidade do decorador fizeram-na da mesma cor que as paredes, a porta, a luz e as cadeiras. Tudo igual, tudo monocromático, percebi que mais alguns minutos ali e eu ganharia a mesma cor da sala como um camaleão.
Isso só mudou quando finalmente o policial rechonchudo e bigodudo - eu poderia achar mais centenas de palavras com “udo” para descrevê-lo - senta-se com dificuldade, me entrega o café num copo descartável e me oferece um de seus cigarros. Algo no policial gordo me lembrava o Cupido adulto naquelas figuras italianas antigas “muito bem, me conte o que aconteceu” e eu explico toda a história sem tocar no nome dela.
“Agora me fale de sua cúmplice . Era agora. Foi exatamente nessa hora que eu deveria ter aberto minha maldita boca e a denunciado para que ela também levasse a culpa e fosse punida pelas leis do amor, mas ao invés disso eu disse não haver cúmplice nenhum como eu já citei acima.
Depois o Policial-Cupido-Obeso chegou a me oferecer algumas garantias como alívio da pena, prisão diferenciada e etc. Mas eu não dei ouvidos. Grande besteira eu fiz da minha vida.
Agora vocês já sabem como vim parar aqui, eu bem que poderia fazer como os outros detentos e escrever um livro confessando meus segredos para a sociedade livrando-me da culpa que me consome, “mais ou menos eu já não faço isso?” - mas não! Preferi tomar outro caminho, pois se eu que criei essa história, agora vou editá-la e contá-la no meu ouvido. Uma história diferente, eu já fui tantas vezes vítima de minhas próprias mentiras, uma a mais, uma a menos.
Mas neste final, eu serei o personagem principal do “Felizes para Sempre”.
Bento.
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